SÃO LEÃO MAGNO E A FÉ EM JESUS CRISTO VERDADEIRO
DEUS E VERDADEIRO HOMEM
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04 de abril de 2014
Quarta pregação da Quaresma
1.
Oriente e ocidente unânimes sobre Cristo
Existem vários caminhos, ou métodos, para
aproximar-se à pessoa de Jesus. Pode-se, por exemplo, partir diretamente da
Bíblia e, também neste caso, é possível seguir várias vias: a via tipológica,
seguida na mais antiga catequese da Igreja, que explica Jesus à luz das
profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via histórica, que reconstrói o
desenvolvimento da fé em Cristo a partir das várias tradições, autores e
títulos cristológicos, ou dos diversos ambientes culturais do Novo Testamento.
Pode-se, pelo contrário, partir das perguntas e dos problemas do homem de hoje,
ou até mesmo da própria experiência de Cristo, e, de tudo isso, chegar à
Bíblia. Todos esses são caminhos amplamente explorados.
A Tradição da Igreja elaborou, bem rápido, uma via
de acesso ao mistério de Cristo, um modo seu de recolher e organizar os dados
bíblicos relativos a ele, e esta via se chama o dogma cristológico, a via
dogmática. Por dogma cristológico compreendo as verdades fundamentais sobre
Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente o de
Calcedônia, que, em substância, se resumem nesses três pilares: Jesus Cristo é
verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa.
São Leão Magno é o Padre que eu escolhi para
introduzir-nos nas profundidades deste mistério. Por um motivo bem específico.
Na teologia latina estava pronta por dois séculos e meio a fórmula da fé em
Cristo que se tornara o dogma de Calcedônia. Tertuliano tinha escrito: “Vemos
duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e
homem[1]”. Depois de muita pesquisa, os autores gregos chegam, por conta
própria, a uma formulação idêntica em substância; mas não porque eles tenham se
atrasado ou perdido tempo, e sim porque só agora era possível dar àquela
fórmula o seu verdadeiro significado, tendo eles evidenciado, enquanto isso,
todas as implicações e resolvido as dificuldades.
O Papa São Leão Magno é aquele que gerenciou o
momento em que as duas correntes do rio – aquela latina e aquela grega – se
uniram e com a sua autoridade de bispo de Roma favoreceu o acolhimento
universal. Ele não se contenta em simplesmente transmitir a fórmula herdada por
Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a adapta aos problemas que apareceram
nesse ínterim, entre o concílio de Éfeso do 431 e aquele de Calcedônia do 451.
Eis, em grandes linhas, o seu pensamento cristológico, como foi exposto no
famoso Tomus ad Flavianum[2].
Primeiro ponto: a pessoa do Deus-homem é idêntica à
do Verbo eterno: “Aquele que se fez homem, sob a forma de servo, é o mesmo que
na forma de Deus criou o homem”. Segundo ponto: a natureza divina e a humana
coexistem nesta única pessoa que é Cristo, sem mistura ou confusão, mas cada
uma mantendo suas propriedades naturais (salva proprietate utriusque naturae).
Ele começa a ser o que não era, sem cessar de ser o que era[3]. A obra da
redenção exigia que “o único e mesmo mediador entre Deus e os homens, o homem
Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relação à natureza humana e
não morrer com respeito à natureza divina”. Terceiro ponto: A unidade da pessoa
justifica o uso da comunicação dos idiomas, pela qual podemos afirmar que o
Filho de Deus foi crucificado e enterrado, e também que o Filho do homem veio
do céu.
Foi uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de
finalmente encontrar um acordo entre as duas grandes “escolas” de teologia
grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros que eram
o monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos tinham o reconhecimento, para
eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e portanto, da plena humanidade de
Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e resistências, podiam
encontrar na formulação de Leão o reconhecimento da identidade da pessoa do
Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus corações por
acima de tudo.
Basta recordar o cerne da definição de Calcedônia
para dar-se conta do quanto esteja presente nela o pensamento do Papa Leão:
“Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o
único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o
mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado
antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós
homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade;
subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível,
inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por
causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de
uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e
hipóstase[4]“.
Poderia parecer uma fórmula tecnicamente perfeita,
mas árida e abstrata, porém, nela se baseia toda a doutrina cristã da salvação.
Só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e
somente se ele também é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal,
a tal ponto que, como se canta no Adoro te devote, “uma única gota de sangue
derramado salva o mundo todo do pecado” (“Cuius una stilla salvum facere totum
mundum qui ab omni scelere”)
Sobre este ponto, oriente e ocidente, são unânimes.
Esta era a situação da humanidade antes de Cristo, escrevem, com poucas
diferenças entre eles, santo Anselmo entre os latinos e o Cabasilas entre os
ortodoxos. De um lado estava o homem que tinha contraído a dívida pecando e que
tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia fazê-lo, sendo a
dívida infinita e sendo ele escravo daquele que deveria ter vencido; por outro
lado está Deus que podia expiar o pecado e vencer o demônio, mas não deveria
fazê-lo, não sendo ele o devedor. Era preciso que se encontrassem unidos na
mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele que podia vencer, e é aquilo que
aconteceu com Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa[5]”.
2.
Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas tranquilas certezas sobre Cristo, nos últimos
dois séculos, foram atingidas por um ciclone crítico que tendia a tirar-lhes
toda a consistência e a qualificá-las como puras invenções dos teólogos. A
partir de Strauss, tornou-se uma espécie de grito de guerra entre os estudiosos
do Novo Testamento: libertar a figura de Cristo dos grilhões do dogma, para
reencontrar o Jesus histórico, o único real. “A ilusão de que Jesus possa ter
sido homem no sentido pleno e que como única pessoa seja superior à toda a
humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da teologia cristã ao mar aberto
da ciência racional[6]”. E eis a conclusão à qual o estudioso chega: “A ideia
do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de Nazaré da história por outro estão
separados para sempre”.
Declara-se sem hesitação o pressuposto racionalista
desta tese. O Cristo do dogma não satisfaz as exigências da ciência racional. O
ataque continuou, com soluções alternativas, quase até os nossos dias.
Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um dogma: para conhecer o verdadeiro Jesus da
história é preciso prescindir da fé nele posterior à Páscoa. Neste clima
proliferaram reconstruções fantasiosas da figura de Jesus a benefício do espetáculo,
algumas com pretensões de historicidade, mas que na verdade se baseavam em
hipóteses de hipóteses, todas respondendo a gostos ou reivindicações do
momento.
Mas agora, eu acho, chegamos ao fim da parábola. É
hora de tomar nota da mudança que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma
certa atitude defensiva e de vergonha que tem caracterizado os estudiosos
crentes nos últimos anos, e ainda mais para fazer chegar uma mensagem a todos
aqueles que nestes anos divulgaram profusamente imagens de Jesus ditadas por
aquele anti-dogma. E a mensagem é que não é possível mais escrever na boa-fé
“Investigações sobre Jesus” que fingem ser “históricas”, mas prescindem, ou
melhor, excluem desde o início, a fé nele.
Quem personaliza de modo mais claro a mudança em ato
é um dos maiores estudiosos vivos do NT, o inglês James D.G. Dunn. Ele resumiu
em um pequeno livro, intitulado “Mudar perspectivas sobre Jesus”, os resultados
da sua monumental pesquisa sobre as origens do cristianismo[7]. O autor pôs a
descoberto as raízes dos dois pressupostos em que se baseiam a contraposição
entre Jesus histórico e o Cristo da fé: primeiro, que para conhecer o Jesus da
história é necessário prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o
que realmente disse e fez o Jesus histórico, é preciso libertar a tradição das
camadas e das adições posteriores e voltar para a camada original, ou à
primeira “redação”, de uma determinada perícope evangélica.
Contra o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a
fé começou antes da Páscoa; se alguns o seguiram e se tornaram seus discípulos
é porque tinham acreditado nele. Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de
fé. Nesta fé, o evento pascal marcará certamente um salto de qualidade, mas
saltos de qualidade, embora menos importantes, já tinham acontecido antes da
Páscoa, em momentos particulares, como a transfiguração, certos milagres
sensacionais, o diálogo de Cesaréia de Filipe. A Páscoa não é um início
absoluto.
Contra o outro assunto, Dunn demonstra como, embora
admitindo que as tradições evangélicas circularam por um certo tempo de forma
oral, os estudiosos aplicavam sempre a tal tradição o modelo literário, como se
faz hoje quando se quer voltar, de edição em edição, ao texto original de uma
obra. Se levarmos em conta as leis que regularizam – até no presente, em certas
culturas -, a transmissão oral das tradições de uma comunidade, veremos que não
há necessidade de enxugar um dito evangélico, em busca de um hipotético núcleo
originário, uma operação que abriu as portas a todo tipo de manipulação dos
textos evangélicos, acabando por repetir aquilo que acontece quando se descasca
uma cebola em busca do seu núcleo sólido que não existe. Algumas destas
conclusões são aquelas que os estudiosos católicos desde sempre sustentaram[8],
mas Dunn tem o mérito de tê-las defendido com argumentos dificilmente
refutáveis a partir da mesma pesquisa histórico-crítica e com as suas próprias
armas.
O rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI
estabelece um diálogo em seu primeiro livro sobre Jesus de Nazaré, dá por
suposto este resultado. Partindo de um ponto de vista autônomo e por assim
dizer neutro, ele faz notar como é vã a tentativa de separar o Jesus histórico
do Cristo da fé pós-pascal. O Jesus histórico, o dos Evangelhos, por exemplo do
discurso da montanha, é já um Jesus que exige a fé na sua pessoa como alguém
que pode corrigir Moisés, que é senhor do sábado, pelo qual também pode-se
fazer uma exceção ao quarto mandamento; em suma como alguém que se coloca em pé
de igualdade com Deus. É próprio por isso, diz o rabino, que embora fascinado
pela figura de Jesus, ele não poderá mais ser um dos seus discípulos.
O estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a
continuidade entre o Jesus da história e o Cristo do querigma, não vai mais
longe. Resta provar a continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da
Igreja. A fórmula de Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento
coerente da fé do Novo Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura
com relação a ela? Este foi o meu principal interesse nos anos em que eu me
ocupava de História das origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não
difere daquela do Cardeal Newman, em seu famoso ensaio “Sobre o desenvolvimento
da doutrina cristã[9]“. Houve certamente a mudança de uma cristologia funcional
(o que Cristo “faz”) a uma cristologia ontológica (o que Cristo “é”), mas não
se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se dá já no interior do
querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo àquela de João, e em
Paulo mesmo, na passagem das suas primeiras cartas àquelas da prisão,
Filipenses e Colossenses.
3.
Além da fórmula
Desta vez o próprio argumento exigia fixar-se um
pouco mais na parte doutrinal do tema. A pessoa de Cristo é o fundamento de
todo o cristianismo. “Se a trombeta emite um som incerto, quem se preparará
para a batalha?”, dizia São Paulo (1 Cor 14, 8): se não tem ideia clara sobre
quem é Jesus Cristo, que força terá a nossa evangelização? Nos resta, no
entanto, fazer agora uma aplicação prática para a vida pessoal e a fé atual da
Igreja, que é o objetivo constante da nossa revisão dos Padres.
Quatro séculos e meio de formidável trabalho
teológico deram à Igreja a fórmula: “Jesus Cristo é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem; Jesus Cristo é uma só pessoa”. Mais sinteticamente ainda: ele
é “uma pessoa em duas naturezas”. A esta fórmula se aplica perfeitamente o dito
de Kiekegaard: “A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo
encantado, onde descansam em um sono profundo os mais graciosos príncipes e
princesas. Basta somente acordá-los, para que se coloquem de pé em toda a sua
glória[10]”. A nossa tarefa é, portanto, a de despertar e de dar sempre nova
vida aos dogmas.
A investigação sobre os Evangelhos – mesmo aquela
que lembramos agora de Dunn – nos mostra que a história não nos pode levar ao
“Jesus em si”, ao Cristo como é na realidade. O que alcançamos nos evangelhos é
sempre, em todas as fases, um Jesus “lembrado”, mediado pela memória que dele
conservaram os discípulos, embora se uma memória crente. É como a ressurreição.
“Alguns dos nossos – dizem os dois discípulos de Emaús – foram ao túmulo e
encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram” (Lc
24, 24). A história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de
Nazaré, estão como disseram os discípulos nos evangelhos, mas ele não o vê.
O mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a
um Jesus “definitivo”, “formulado”, mas Tomás de Aquino nos ensina que “a fé
não termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res). Entre a
fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há entre a
fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém pode dizer
que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a realidade;
somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus “real” que está além
da história e por trás da definição?
E eis que nos deparamos com a grande notícia
reconfortante. Existe a possibilidade de um conhecimento “imediato” de Cristo:
é aquele que nos dá o Espírito Santo enviado por ele mesmo. Ele é a única
“mediação não-mediata” entre nós e Jesus, no sentido que não age como um véu,
não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu
“alter ego”, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que “o Espírito
Santo é a nossa mesma comunhão com Cristo[11]”. E nisso, aquela do Espírito é
diferente de qualquer outra mediação entre nós e o Ressuscitado, seja eclesial
que sacramental.
Mas é a Escritura mesma que nos fala deste papel do
Espírito Santo com o propósito do conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do
Espírito Santo em Pentecostes se traduz em uma repentina iluminação de todo o
trabalho e a pessoa de Cristo. Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie
de definição “urbi et orbi” do senhorio de Cristo: “Saiba, portanto, com
certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus
que vós crucificastes” (At 2, 36).
São Paulo afirma que Jesus Cristo é revelado “Filho
de Deus com poder pelo Espírito de santidade” (Rm 1, 4), isto é, por obra do
Espírito Santo. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma
iluminação interior do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O Apóstolo atribui ao
Espírito Santo “a compreensão do mistério de Cristo”, que foi dada a ele, como
a todos os santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5). Só se forem
“fortalecidos pelo Espírito”, – continua o Apóstolo – os crentes poderão
“compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o
amor de Cristo que excede todo conhecimento” (Ef 3, 16-19).
No Evangelho de João, o próprio Jesus anuncia esta
obra do Paráclito com relação a ele. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos
discípulos; recordar-lhes-á tudo o que ele disse; os conduzirá à toda verdade
sobre a sua relação com o Pai; lhes dará testemunho. Exatamente isso será, de
agora em diante, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito
de Deus e não de um outro espírito: se leva a reconhecer Jesus vindo na carne
(cf. 1 Jo 4, 2-3).
4.
Jesus de Nazaré, uma “pessoa”
Com a ajuda do Espírito Santo, façamos então uma
pequena tentativa de “acordar” o dogma. Do triângulo dogmático de Leão Magno e
de Calcedônia – “verdadeiro Deus”, “verdadeiro homem”, “uma pessoa” – nos
limitamos a tomar em consideração somente o último elemento: Cristo “uma
pessoa”. As definições dogmáticas são “estruturas abertas”, capazes de acomodar
novos significados, o que é possível graças ao progresso do pensamento humano. Na
sua etapa mais antiga, pessoa (do latim personare, ressoar) indicava a máscara
que o ator precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso passou a
indicar rosto, portanto, indivíduo, até chegar ao seu significado mais elevado
de “ser individual de natureza racional” (Boécio).
No uso moderno, o conceito se enriqueceu de um
significado mais subjetivo e relacional, favorecido sem dúvida pelo uso
trinitário de pessoa como “relação subsistente”. Indica, portanto, o ser humano
em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu. Nisso a
fórmula latina “uma pessoa” revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva
grega de “uma hispóstase”. Hipóstase se pode dizer de cada objeto particular
existente; pessoa, somente do ser humano e, por analogia, do ser divino. Nós
falamos hoje (e também os gregos falam) de “dignidade da pessoa”, não de
dignidade da hipóstase.
Aplicamos tudo isso ao nosso relacionamento com
Cristo. Dizer que Jesus é “uma pessoa” significa também dizer que ressuscitou,
que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe por tu como ele me trata
por tu. É necessário passar constantemente, no nosso coração e na nossa mente,
do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode
falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não se pode
falar. Jesus, infelizmente, para a maioria dos crentes é ainda um personagem,
alguém de quem se discute, se escreve muito, uma memória do passado, um
conjunto de doutrinas, de dogmas ou de heresias. É um ente, mais do que um
existente.
O filósofo Sartre, em uma página famosa, descreveu a
emoção metafísica que produz a súbita descoberta da existência das coisas e
pelo menos nisto podemos dar-lhe crédito:
“Eu estava no Jardim Público. A raiz da castanheira
entrava na terra, exatamente sob o meu banco. Eu não me lembrava que era uma
raiz. As palavras se desvaneceram e, com elas, a significação das coisas, a
maneira de empregá-las, as frágeis referências que os homens tinham traçado na
sua superfície. [ ...] E depois tive aquela iluminação. Fiquei sem respiração.
[...] geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta; não se
podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos [...] E
depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava, ali estava, era claro como a
água: a existência dera-se subitamente a conhecer[12]”.
Para ir além das ideias e palavras de Jesus e entrar
em contato com ele, pessoa que vive, é necessário passar por uma experiência
desse tipo. Alguns exegetas interpretam o nome divino “Aquele que é”, no
sentido de “aquele que está”, que é presente, disponível, agora, aqui[13]. Esta
definição aplica-se perfeitamente também ao Jesus ressuscitado.
É possível ter Jesus como amigo, porque, depois de
ter ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado, posso tratá-lo como um ser
vivo a um ser vivo, um presente a um presente. Não com o corpo e nem sequer
somente com a fantasia, mas “no Espírito” que é infinitamente mais íntimo e
real de ambos. São Paulo nos assegura que é possível fazer tudo “com Jesus”:
quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer outra coisa (cf. 1 Cor 10,
31; Col 3,17).
Infelizmente, raramente pensamos em Jesus como um
amigo e um confidente. No subconsciente domina a imagem dele ressuscitado,
ascendido ao céu, distante em sua transcendência divina, que retornará um dia,
no fim dos tempos. Esquecemos que sendo, como diz o dogma, “verdadeiro homem”,
melhor, a mesma perfeição humana, ele possui no mais alto grau o sentimento da
amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja
um tal relacionamento conosco. No seu discurso de despedida, dando plena vazão
a seus sentimentos , ele diz: ” Já não vos chamo servos, porque o servo não
sabe o que o seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer
todas as coisas que ouvi do meu Pai” (Jo 15 ,15).
Já vi esse tipo de relacionamento com Jesus, não
tanto nos santos, onde prevalece o relacionamento com o Mestre, com o Pastor,
com o Salvador, o Esposo…, mas com os hebreus que, de modo semelhante a Saulo,
chegam hoje a aceitar o Messias. O nome de Jesus, de repente, muda de uma
obscura ameaça, ao mais doce e amado dos nomes. Um amigo. É como se a ausência
de dois mil anos de discussões sobre Cristo jogasse a favor deles. O deles não
é nunca um Jesus “ideológico”, mas uma pessoa de carne e sangue. Do sangue
deles! Emociona ler os testemunhos de alguns deles. Todas as contradições se
resolvem em um instante, todas as escuridões se iluminam. É como ver a leitura
espiritual do Antigo Testamento se realizar totalmente e rapidamente sob os
próprios olhos. São Paulo o compara à queda de um véu dos olhos (cf. 2 Cor
3,16).
Durante sua vida terrena, embora amando a todos sem
distinção, somente com alguns – com Lázaro e as irmãs e mais ainda com João, o
“discípulo que ele amava” – Jesus tem um relacionamento de verdadeira amizade.
Agora, porém, que ressuscitou e não está mais sujeito aos limites da carne, ele
oferece a todo homem e a toda mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no
sentido mais pleno da palavra. Que o Espírito Santo, o amigo do esposo, nos
ajude a aceitar com alegria e maravilha esta possibilidade que preenche a vida.
FONTE: http://www.cantalamessa.org/?p=2328&lang=pt
[Tradução Thácio Siqueira/ ZENIT]
[1] Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2,
p.1199)
[2] Leão Magno,
Carta 28 (PL 54, 755 s.).
[3] Leão Magno,
Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).
[4] Denzinger,
Enchiridion Symbolorum, 301-302.
[5] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150,
313); Cf Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20; Tomas de Aquino, Summa theologiae,
III, q. 46, art. 1, ad 3.
[6] D.F.
Strauss, Der Christus des Glaubens und der Jesus der Geschichte, 1865.
[7] J.D.G. Dunn,
A New Perspective on Jesus. What the Quest for the Historical Jesus Missed,
Grands Rapids, Michigan 2005 (Trad. ital. Cambiare prospettiva su
Gesù, Paideia, Brescia 2011).
[8] Dunn considera muito o estudo do exegeta
católico alemão H. Schürmann sobre a origem pré-pascal de certos ditos de
Jesus. ob.cit. p.28
[9] Cf. o meu estudo, Dal kerygma al dogma. Studi sulla cristologia dei Padri, Vita e Pensiero,
Milano 2006, pp. 11-51.
[10] S.
Kierkegaard, Diario, II,A 110 (ed. a cura di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196).
[11] S. Ireneo, Contra as heresias, III, 24, 1
[12] J.-P. Sartre,
La Nausea, Milano 1984, p. 193 s.
[13] Cf. G. Von Rad, Teologia dell’Antico
Testamento, I, Paideia, Brescia 1972, p. 212
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