quinta-feira, 24 de abril de 2014

HOMILIA DE DOM OTTORINO NA MISSA DOS SANTOS ÓLEOS - A COMUNHÃO SACERDOTAL

MISSA DOS SANTOS ÓLEOS – 15.04.14



1. A celebração desta Missa dos Santos Óleos nos ajuda a compreender a dimensão sacerdotal do povo de Deus: o sacerdócio comum dos fiéis em força do Batismo e o sacerdócio dos ministros ordenados; este não exclui o outro, mas o enriquece.
A vocação e a missão dos leigos são tão importantes para a vitalidade das nossas Comunidades, seja pelo esforço de comunicar a fé às crianças e jovens, seja pela animação das pastorais e pelo anúncio do Evangelho, seja pela presença nas estruturas e dinamismos da sociedade, com especial atenção às instituições de caridade.
Aos sacerdotes, ministros ordenados, cabem estimular e apoiar, em força da graça própria da ordenação, esta riqueza e pluralidade apostólica dos fiéis. E estes, os fiéis, precisam necessariamente da presença dos ministros ordenados, porque, pelo sacramento da Ordem, encarnam a pessoa e a missão de Jesus Cristo.
O caráter indispensável do ministério sacerdotal convida-nos a um compromisso sério e decidido na pastoral das vocações sacerdotais, porque é de suma importância para a vida da Igreja e do mundo.
Devo, neste momento, lamentar a escassez das vocações sacerdotais em nossa Diocese: não porque Deus não chama, mas porque nós não rezamos insistentemente ao Senhor da messe, porque não trabalhamos com entusiasmo neste campo tão delicado, porque não testemunhamos a alegria de ser sacerdotes, porque não dirigimos o convite aos nossos jovens e porque, estes também, se fazem de surdos aos apelos de Deus e gostam mais das propostas do mundo.
Haja, em nossa Diocese, uma corrente de orações, como um cerco de Jericó ao redor dos jovens, para derrubar os muros da superficialidade, dos prazeres humanos, da liberdade individual, do egoísmo e do medo: quase por encanto, veremos surgir novas vocações, generosas e corajosas!
2. Mas, nesta celebração, nós podemos entender, pela consagração dos santos óleos, a abundância sacramental na Igreja pela ação  dos ministros ordenados; esta Missa, dita da unidade, porque reúne os presbíteros ao redor do Bispo, mostra a riqueza sacramental que é, principalmente, dom de Deus e, ao mesmo tempo, compromisso pastoral nosso, a partir da comunhão de amor que brota do mistério trinitário.
O Papa João Paulo II, proximamente santo, dizia: “A identidade sacerdotal, como toda e qualquer identidade cristã, encontra na SS. Trindade a sua própria fonte” (PDV,12).
Esta provocação que vem do Santo Papa, leva-me, mais uma vez, a tocar no tema da comunhão presbiteral e na caridade fraterna, tão almejada pelo Senhor Jesus na longa oração sacerdotal, antes da Paixão.
Todos os anos, na celebração da Missa crismal, ofereci estímulos e pedi um compromisso sério na construção desta comunhão, mas ainda estamos longe: temos que admitir esta falha.
Não basta denunciar a falta de comunhão e caridade fraterna; precisa agir, começar com gestos concretos de amor, com humildade e perseverança, senão é pura atitude fingida, é álibi ao nosso agir.
Sinto-me na mesma situação de Jesus diante de Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados, quantas vezes quis reunir teus filhos como a galinha recolhe seus pintainhos debaixo das asas, mas não quisestes!” (Lc 13,34).
O meu coração de pai e irmão está ferido e machucado, sofre do mesmo jeito, porque vejo os entrelaços que impedem o crescimento, percebo as barreiras que freiam minha ação, mas não renuncio a indicar os comportamentos que não favorecem e destroem a comunhão: quem não assume este compromisso vivendo às margens da comunidade sacerdotal, quem semeia cizânia, espalhando suspeitas e até calúnias, este está aliado com o diabo, que é a raiz de todos os males; quem não perdoa, quem ignora o seu irmão, quem tem vida ambígua é indigno do ministério sacerdotal.
Jesus sabia quanto seria difícil viver a comunhão e rezava ao Pai “para que sejam um como nós”, mas ao mesmo tempo pedia-lhe de guardá-los do Maligno “para que sejam perfeitos na unidade  e para que o mundo creia”; somente a vida íntima com a SS. Trindade pode garantir a comunhão.
3. A celebração desta noite é marcada por uma forte espiritualidade sacerdotal, porque foi na Primeira Páscoa, a Páscoa definitiva, que Jesus Cristo exerceu o seu múnus sacerdotal, substituindo-se ao cordeiro pascal: Ele se ofereceu como verdadeiro Cordeiro; foi uma Páscoa eterna, no sentido que nunca irá se esgotar, porque naquela Primeira do tempo definitivo, Jesus incumbiu aos 12 Apóstolos de dar continuidade para sempre: “fazei isto em memória de mim”.
É a partir da Eucaristia que poderá desabrochar e crescer a nossa espiritualidade sacerdotal. Indico alguns aspectos desta espiritualidade.
Antes de mais nada, o Sacerdote age na Pessoa de Jesus Cristo que está presente nele. Isso exige, por parte do Sacerdote, uma semelhança sempre mais profunda com Jesus que está nele, a fim de ser, como Jesus: caminho, verdade e vida. Podemos dizer isso com serenidade?
Em segundo lugar, nós sabemos que a santidade é a qualidade específica de Jesus: ela é bondade, é amor, é beleza interior, é pura luz. Estamos, pelo menos, tentando o caminho da santidade, revestindo-nos destas qualidades? Como Sacerdotes, temos a consciência de ser ministros de santificação, pontes de encontro entre Deus e os homens?
O Papa Francisco, comentando ontem aos Seminaristas maiores a Palavra de Ezequiel “Ai dos pastores que apascentam a si mesmos”, dizia: “Vós não vos estais preparando para exercer uma profissão, para vos tornardes funcionários de uma empresa ou de um organismo burocrático. Cuidado, estais atentos a não cair nisso! Trata-se de se tornarem Pastores à imagem do Bom Pastor. Quem não se sentir disposto a seguir este caminho, com esta atitude e orientação, tenha coragem de procurar outra estrada”....;
Lendo nestes dias um texto de Madre Trinidad de la Santa Iglésia, sobre a mesma passagem de Ezequiel, ela comentava: “Há sacerdotes sem viverem em comunhão com Deus, sem o conhecerem, sem saberem bem os critérios divinos e, portanto, sem assimilarem a vida da Igreja, usurpando aos leigos a formosa responsabilidade que Deus lhes confiou no seio da Igreja”: palavras gravíssimas! A espiritualidade sacerdotal é exatamente o contrário.
Outro elemento da espiritualidade sacerdotal é: ser apaixonados, enamorados por Deus. Estamos vivendo num tempo difícil, que obscurece o que é sagrado; não podemos perder o enamoramento com Deus, pelo contrário, temos que regenerá-lo interiormente a cada dia, se não quisermos que outros amores tomem conta de nós. A vida do Padre, sem a paixão por Deus, é pesada demais e poderia se tornar insuportável. Mas, vejam bem, a solução não está no abandono, mas no retorno à fonte da alegria, ao amor de Deus, que basta ao coração, como lembra Santa Tereza.
Este é o grande mistério que nos envolve, que nos preenche e que tem como objetivo a renovação do mundo, conforme o projeto de Deus.

Poderia dizer muitas coisas ainda sobre a nossa espiritualidade, mas paro por aqui. Confesso que a preparação desta homilia me causou muito sofrimento, com sentimentos de frustração, de derrota, de culpa. Onde está a comunhão do meu presbitério? Onde está o mal que impede a comunhão? Levantei os olhos ao Crucificado, refleti sobre o lema do meu brasão “A cruz de Cristo em nossos corações”; entendi: é pela paixão e morte que se chega à Ressurreição. Retomo, portanto, com humildade o meu caminho, consciente das minhas limitações e fraquezas, mas firme certeza que o Senhor está ao meu lado, está ao vosso lado; está em vosso meio, meus irmãos e minhas irmãs! Rezai por nós.

terça-feira, 15 de abril de 2014

SÃO GREGÓRIO MAGNO E O ENTENDIMENTO ESPIRITUAL DAS ESCRITURAS - 5ª Pregação de Frei Raniero Cantalamessa

SÃO GREGÓRIO MAGNO E O ENTENDIMENTO ESPIRITUAL DAS ESCRITURAS



11 de abril de 2014 - Quinta pregação da Quaresma

Em um esforço por colocar-nos na escola dos Padres para dar um novo impulso e profundidade à nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o modo em que eles liam a Palavra de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a guiar-nos à “inteligência espiritual” e a um renovado amor pelas Escrituras.
Aconteceu no mundo moderno, em relação à Escritura, a mesma coisa que aconteceu com a pessoa de Jesus. A busca do exclusivo sentido histórico e literal da Bíblia que dominou nos últimos dois séculos partia dos mesmos pressupostos e levou aos mesmos resultados da pesquisa sobre o Jesus histórico diferente do Cristo da fé. Jesus era reduzido a um homem extraordinário, um grande reformador religioso, mas nada mais; a Escritura era reduzida a um livro excelente, até mesmo o mais interessante do mundo, mas um livro como os outros, que devia ser estudado com os meios com os quais se estudam todas as grandes obras da antiguidade. Hoje se está indo inclusive além. Um certo ateísmo militante maximalista, anti-judaico e anti-cristão, tem a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, como um livro “cheio de abominações”, que deve ser retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse assalto às Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e a sua experiência. Na Dei Verbum, o Vaticano II reafirmou a perene validade das Escrituras, como palavra de Deus à humanidade; a liturgia da Igreja a coloca em um lugar de honra em cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais atual, unem também a fé mais convicta no valor transcendente da palavra inspirada. A prova talvez mais convincente é, no entanto , a da experiência . O argumento que, como vimos, levou à afirmação da divindade de Cristo em Nicéia, em 325 e pelo Espírito Santo em Constantinopla no 381, se aplica plenamente também à Escritura: nela experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo ainda nos fala, o seu efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra; portanto não pode ser simples palavra humana.

1.      O velho se torna novo

O propósito da nossa reflexão é ver como os Padres nos podem ajudar a reencontrar aquela virgindade de escuta, aquele frescor e liberdade ao aproximar-se da Bíblia que permitem experimentar a força divina que emana dela. O Padre e Doutor da Igreja que escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório Magno, mas para poder compreender a sua importância neste campo temos que voltar para as fontes do rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos no geral, o seu percurso antes de chegar até ele.
Na leitura da Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma linha começada por Jesus e pelos apóstolos, e só esse dado nos deveria fazer mais cautelosos ao julgá-los. Uma rejeição radical da exegese dos Padres significaria uma rejeição da exegese do próprio Jesus e dos apóstolos. Jesus, aos discípulos de Emaús, explica tudo aquilo que se referia a ele nas Escrituras; afirma que as Escrituras falam dele, que Abraão viu o seu dia; muitos gestos e palavras de Jesus se dão “para que sejam cumpridas as Escrituras”; os primeiros dois apóstolos dizem dele: “Achamos aquele de quem Moisés e os profetas escreveram” (Jo 1 , 45).
Mas todos estes eram resultados parciais. Ainda não aconteceu o transfert total. Isso se realiza na cruz e está contido na palavra de Jesus moribundo: “Tudo está consumado”. Também no Antigo Testamento, houve novidades, retomadas, transposições; por exemplo, o retorno da Babilônia era visto como uma renovação do milagre do Êxodo. Eram saltos quantitativos. Agora acontece um salto qualitativo, uma mudança de sinal: personagens, eventos, instituições, leis, templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo de repente aparece em uma outra luz. Como quando em uma sala iluminada pela luz fraca de uma vela, se acende de repente uma forte luz de néon. Cristo que é “luz do mundo” é também luz das Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado “abre a mente dos discípulos para compreender as Escrituras” (Lc 24, 45), refere-se a esta nova inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O Cordeiro quebra os selos e o livro da história sagrada pode finalmente ser aberto e lido (cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é como antes. É um instante que unifica – e ao mesmo tempo distingue – os dois Testamentos e as duas alianças: “Clara e brilhante, aqui está a grande página que separa os dois Testamentos! Todas as portas são abertas ao mesmo tempo, toda a oposição se dissipa, todas as contradições são resolvidas”[1]. O exemplo mais claro para compreender o que acontece neste momento é a consagração na Missa, e, de fato, esta só é o memorial da outra. Aparentemente nada mudou no pão e no vinho sobre o altar, no entanto, sabemos que, após a consagração, eles já são algo completamente diferente e nós os tratamos de maneira muito diferente de antes.
Os apóstolos continuam esta leitura, aplicando-a à Igreja, assim como à vida de Jesus. Tudo o que estava escrito no Êxodo era escrito para a Igreja (1 Cor 10, 11); a rocha que se seguia e tirava a sede dos judeus no deserto anunciava Cristo e o maná, o pão descido do céu; os profetas falaram dele (1 Pd 1, 10 ss), o que se diz do Servo Sofredor de Isaías foi cumprido em Cristo, e assim por diante.
Passando do Novo Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois usos diferentes dessa nova compreensão das Escrituras: um de tipo apologético e outro de tipo teológico e espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de fora, o segundo para a edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges que compartilham a Escritura compõem-se os assim chamados “testemunhos”, ou seja, coleções de frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a fé em Cristo. Sobre isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com Trifon judeu de São Justino, e tantos outros escritos.
O uso teológico e eclesial da leitura espiritual começa com Orígenes, tido justamente como o fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza das suas intuições sobre o sentido espiritual das Escrituras e das suas aplicações práticas é inesgotável. Elas farão escola seja no oriente que no ocidente, onde começa a ser conhecido ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a sua riqueza e genialidade, a exegese de Orígenes introduz, porém, na tradição exegética da Igreja também um elemento negativo devido ao seu entusiasmo pelo espiritualismo de caráter platônico. Tomemos a sua seguinte afirmação de método:
“Não se deve acreditar que os fatos históricos sejam figuras de outros fatos históricos e as coisas corpóreas de outras coisas corpóreas, mas, pelo contrário, que as coisas corpóreas são figuras de coisas espirituais e os fatos históricos de realidades inteligíveis[2]”.
Desta forma, à correspondência horizontal e histórica, própria do Novo Testamento, pela qual um personagem, um fato, ou uma palavra do Antigo Testamento é visto como profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo ou na Igreja, se substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato histórico e visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo de uma ideia universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a se transformar na relação entre a história e o espírito[3].

2.      As Escrituras, pedras quadrangulares

Por meio de Ambrósio e outros que traduziram as suas obras para o latim, o método e os conteúdos de Orígenes, entram plenamente nas veias da cristandade latina e continuarão a fluir por toda a idade média. Qual foi, então, na explicação da Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir a resposta em uma só palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio: organização!
Àquele de Orígenes se acrescenta, é verdade, a contribuição não menos criativa e audaz de um outro gênio, aquela de Agostinho que enriquecerá de intuições e aplicações novas e ousadas a leitura da Bíblia. Mas não é nesta linha que se coloca a contribuição mais significativa dos Padres latinos, ou seja, na descoberta de significados novos e escondidos na Palavra de Deus, mas na sistematização do imenso material exegético que tinha se acumulado na Igreja, no traçar uma espécie de mapa para orientar-se na sua utilização.
Esse esforço organizativo – começado com Agostinho – foi levado à sua forma definitiva por Gregório Magno e consiste na doutrina do quádruplo sentido da Escritura. Neste campo, ele é considerado “um dos principais iniciadores e um dos maiores patronos da doutrina medieval dos quatro sentidos”, a ponto de se poder falar da Idade Média como da “época gregoriana[4]”.
A doutrina dos quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma forma de organizar as explicações de um texto bíblico ou de uma realidade da história da salvação, distinguindo nelas quatro campos ou níveis diferentes de aplicação: 1. O nível literal e histórico; 2. O nível alegórico (hoje prefere-se chamar tipológico) relacionado à fé em Cristo; 3. O nível moral, ou seja, em relação ao atuar do cristão; 4. O nível escatológico, que se refere ao cumprimento final no céu. Gregório escreve:
“As palavras da Sagrada Escritura são pedras quadrangulares [...]. Em todo acontecimento do passado que narram [sentido literal], em cada coisa futura que anunciam [sentido anagógico], em cada dever moral que pregam [sentido moral], em cada realidade espiritual que proclamam [sentido alegórico ou cristológico], de cada lado se mantém de pé e são irrepreensíveis[5]”.
Na Idade Média foi composto um famoso dístico que resumiu esta doutrina: Littera gesta docet / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. “A letra te ensina o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia”. A aplicação talvez mais clara deste esquema se tem com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a história, a Páscoa é o rito que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a alegoria, referindo-se à fé, ela indica a imolação de Cristo verdadeiro cordeiro pascal; de acordo com a moral, indica a transição dos vícios para a virtude, do pecado à santidade; de acordo com a anagogia ou a escatologia, indica a transição das coisas terrenas às coisas celestiais, ou também a Páscoa eterna que se celebrará no céu.
Não se trata de um esquema rígido e mecânico, mas flexível e passível de infinitas variações, começando com a ordem em que são listados os vários sentidos. Eis um texto de Gregório no qual se vê a liberdade com que ele mesmo usa o esquema do quádruplo sentido e como sabe, com ele, tirar várias harmonias da Escritura. Comentando a imagem de Ezequiel 2, 10, sobre o rolo “escrito dentro e fora” (“intus et foris”, de acordo com a Vulgata) diz:
“O rolo da Palavra de Deus está escrito dentro, por meio da alegoria; fora, por meio da história. Dentro por meio da inteligência espiritual; fora por meio do simples sentido literal, adequado aos espíritos ainda fracos. Dentro porque promete os bens invisíveis; fora, porque estabelece a ordem das coisas visíveis com a retidão dos seus preceitos. Dentro, porque dá a segurança dos bens celestiais; fora, porque ensina como usar os bens terrenos, ou como escapar das suas atrações[6]”.

3.      Por que ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia

O que podemos tirar deste modo assim tão livre e corajoso de colocar-se diante da Palavra de Deus? Mesmo um admirador da exegese patrística e medieval como o padre de Lubac admite que não podemos nem retornar a ele, nem imitá-lo mecanicamente no nosso tempo[7]. Seria uma operação artificial, fadada ao fracasso porque não temos os pressupostos dos quais eles partiram, o universo espiritual no qual eles se moviam.
Gregório Magno e os Padres no geral estavam certos sobre o ponto fundamental que é ler as Escrituras em referência a Cristo e à Igreja. Antes deles já o faziam, o vimos, Jesus e os apóstolos. A parte já superada das suas exegeses está no ter acreditado que podiam aplicar este critério a cada palavra particular da Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo, levando ao simbolismo (por exemplo aquele dos números) a excessos que hoje nos fazem rir às vezes.
Podemos ter certeza, observa de Lubac, que, se estivessem vivos hoje, eles seriam os mais entusiastas na utilização dos recursos críticos colocados à disposição pelo progresso dos estudos. Orígenes realizou um trabalho hercúleo no seu tempo deste ponto de vista, obtendo e comparando um com o outro e com o texto hebraico as várias traduções gregas existentes da Bíblia (a Exapla) e Agostinho não hesitava em corrigir algumas de suas explicações à luz da nova versão da Bíblia que Jerônimo estava fazendo[8].
O que então permanece válido da herança dos Padres neste campo? Talvez aqui, mais do que em qualquer outro lugar, eles têm uma palavra decisiva a dizer para a Igreja de hoje que temos de tentar descobrir. O que caracteriza a leitura da Bíblia dos Padres, além das suas elaboradas alegorias e ousadas aplicações, além da mesma doutrina dos quatro sentidos da Escritura? De cima para baixo e cada ponto seu é uma leitura de fé: partia da fé e levava à fé. Todas as suas distinções entre leitura histórica, alegórica, moral e escatológica se resumem hoje a uma só distinção: aquela entre uma leitura de fé da Escritura e uma leitura privada de fé, ou ao menos privada de uma certa qualidade de fé.
Vamos deixar de lado os estudiosos da Bíblia não crentes que lembrei no início, para os quais ela é só um livro interessante, mas só humano. A diferença que eu gostaria de evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos crentes. É a distinção entre uma leitura pessoal e uma leitura impessoal da palavra de Deus. E tento explicar o que entendo. Os Padres se aproximavam da palavra de Deus com uma pergunta constante: o que ela diz, agora e aqui, à Igreja e a mim pessoalmente? Estavam convencidos de que ela sempre traz novas luzes e novos compromissos.
“Toda a Escritura, está escrito, é inspirada por Deus ” (2 Tm 3, 16). A expressão que se traduz como “inspirado por Deus”, ou “divinamente inspirada”, na língua original, é uma palavra única, theopneustos, que contém os dois vocábulos de Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma). Tais palavras tem dois significados fundamentais. O significado mais conhecido é aquele passivo, revelado em todas as traduções modernas: a Escritura é “inspirada por Deus”. Um outro passo do Novo Testamento explica assim este significado: “Movidos pelo Espírito Santo falam aqueles homens (os profetas) de parte de Deus” (2 Pd 1, 21). É, em definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina da Escritura, aquela que proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo é aquele “que falou pelos profetas”.
Da inspiração bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas um efeito: a infalibilidade bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém nenhum erro (se entendemos “erro”, corretamente, como ausência de uma verdade possível humanamente, em um determinado contexto cultural e, portanto, exigível pelo escritor). Mas a inspiração bíblica fundamenta muito mais do que a simples infalibilidade da Palavra de Deus (que é uma coisa negativa); fundamenta, positivamente, a sua inexauribilidade, a sua força e vitalidade divina. A Escritura, dizia Santo Ambrósio, é theopneustos não só porque é “inspirada por Deus”, mas também porque é “inspirante Deus”, porque inspira a Deus[9]! Agora inspira a Deus!
“Com o que podemos comparar as palavras da Sagrada Escritura – escreve São Gregório – se não com uma pederneira, na qual se esconde o fogo? Ela é fria quando se segura com a mão, mas atingida pelo ferro, solta faíscas e gera fogo[10]”.
A Escritura não contêm só o pensamento de Deus fixado uma vez por todas; contém também o coração de Deus e a sua vontade viva que lhe indica o que quer de você em um certo momento, e talvez só de você. A constituição conciliar Dei Verbum recolhe também esta linha da tradição quando diz que “as sagradas Escrituras inspiradas por Deus [inspiração passiva!] e redigidas uma vez por todas, comunicam imutavelmente a palavra do mesmo Deus e fazem ressoar nas palavras dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo [inspiração ativa!][11]“. Portanto, não se trata só de ler a palavra de Deus, mas também de fazer-se ler por esta; não somente de perscrutar as Escrituras, mas de deixar-se perscrutar pelas Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela como os bombeiros entravam uma vez entre as chamas, ou seja, com ternos de amianto que os faziam passar incólumes entre o fogo.
Retomando a imagem de São Tiago, muitos Padres, entre os quais o nosso Gregório Magno, comparavam a Escritura a um espelho[12]. O que dizer de alguém que passasse todo o tempo examinando a forma e o material de que é feito o espelho, a época em que remonta e tantos outros detalhes, mas não se olhasse nunca no espelho? Assim faria aquele que passasse o tempo resolvendo todos os problemas críticos que a Escritura coloca, as fontes, os gêneros literários etc, mas não se olhasse nunca no espelho, ou melhor, nunca permite que o espelho o olhe e o perscrute a fundo, até o ponto onde se dividem as juntas das medulas. A coisa mais importante, sobre a Escritura, não é resolver os seus pontos obscuros, mas colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o nosso Gregório, “se compreende fazendo-a[13]”.
Uma forte fé na palavra de Deus não é apenas essencial para a vida espiritual do cristão, mas também para todas as formas de evangelização. Há duas maneiras de preparar um sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou escrita. Eu posso, antes de sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a ser anunciada e o tema a ser desenvolvido, baseando-me nos meus próprios conhecimentos, nas minhas preferencias, etc., e depois, uma vez preparado o discurso, colocar-me de joelhos para pedir apressadamente a Deus que abençoe o que escrevi e dê eficácia às minhas palavras. É já uma coisa boa, mas não é o caminho profético. Devemos seguir a ordem inversa: primeiro de joelhos, depois à mesa.
Temos que começar da certeza da fé que, em todas as circunstâncias, o Senhor Ressuscitado tem no coração uma palavra sua que deseja fazer chegar ao seu povo. E ele não a deixa de revelar ao seu ministro, se humildemente e com insistência ele a pede. No começo se trata de um movimento quase imperceptível do coração: uma pequena luz que se acende na mente, uma palavra da Bíblia que começa a atrair a atenção e que ilumina uma situação. Verdadeiramente, “a menor de todas as sementes”, mas depois você percebe que dentro estava tudo; havia um trovão capaz de derrubar os cedros do Líbano. Depois você se coloca à mesa, abre os seus livros, consulta as suas anotações, consulta os Padres da Igreja, os mestres, os poetas… Mas já é outra coisa. Não é mais a Palavra de Deus à serviço da sua cultura, mas a sua cultura à serviço da Palavra de Deus.
Orígenes descreve bem o processo que leva a esta descoberta. Antes de encontrar na Escritura o alimento – dizia – era preciso suportar uma certa “pobreza” dos sentidos; a alma é cercada pela escuridão em todos os lados, só se encontra em ruas sem saída. Até que, de repente, depois de trabalhosa pesquisa e oração, eis que ressoa a voz do Verbo e imediatamente algo se ilumina; aquele que ela procurava lhe vai ao encontro “pulando sobre as montanhas e saltando pelas colinas” (cf. Ct 2 , 8), ou seja, abrindo-lhe a mente para receber uma palavra sua forte e luminosa[14]. Grande é a alegria que acompanha este momento. Ela fazia dizer a Jeremias: “Quando as tuas palavras vieram a mim, as devorei com avidez; a tua palavra foi a alegria e o gozo do meu coração” (Jer 15, 16).
Normalmente, a resposta de Deus vem na forma de uma palavra da Escritura que, no entanto, naquele momento revela a sua importância extraordinária para a situação e para o problema a ser tratado, como se tivesse sido escrita especificamente para ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, “como com palavras de Deus” (cf. 1 Pd 4, 11). Este método vale sempre: para os grandes documentos, como para a lição que o mestre deu aos seus noviços, para a douta conferência como para a humilde homilia dominical.
Todos nós tivemos a experiência do que pode fazer uma única palavra de Deus profundamente acreditada e vivida primeiramente por aquele que a pronuncia e às vezes até mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se constatar que, entre tantas outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e levou mais de um ouvinte ao confessionário. A experiência humana, as imagens, as histórias vividas, nada de tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas deve ser submetida à palavra de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o que nos recordou o Santo Padre nas páginas dedicadas à homilia da “Evangelii gaudium” e é quase presunçoso de minha parte pensar que eu poderia acrescentar algo.
Gostaria de terminar esta meditação com um pensamento de gratidão para com os irmãos judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima visita do Santo Padre a Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe damos, nos une o comum amor pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv tem uma pintura de Reuben Rubin onde se veem dois rabinos que apertam, um no peito e outro na bochecha, os rolos da palavra de Deus, e os beijam como se beija a própria esposa. Com os irmãos hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o ecumenismo espiritual entre cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima de diálogo e de estima recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o que nos separa. Não podemos nos esquecer que recebemos deles as duas coisas mais preciosas que temos na vida: Jesus e as Escrituras.
Também neste ano, a Páscoa hebraica cai na mesma semana que a cristã. Desejamos a nós mesmos e a eles, Feliz Páscoa, Santo e Feliz Pesach.

FONTE: http://www.cantalamessa.org/?lang=pt

[Tradução Thácio Siqueira/ZENIT]
[1] Paul Claudel, L’épée et le miroir: Les sept douleurs de la Sainte Vierge , Paris: Gallimard, 1939), 74-75.
[2] Orígenes, Comentário a João, 10, 110 (GCS, Origenes vol. 4, p. 189)
[3] Cf. H. de Lubac, Histoire et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Aubier, Paris 1950.
[4] H. de Lubac, Exegèse Mèdiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris 1959, vol. I,1, p. 189 ; vol. I,2, p. 537).
[5] Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, IX, 8.
[6] Gregorio Magno,Homilias sobre Ez. I, IX, 30.
[7] H. de Lubac, História e Espírito, cit. , pp. 629 ss.
[8] O faz por exemplo a propósito do significado da palavra “páscoa”, em Enarrationes in Psalmos 120,6 (CC 40, p. 1791).
[9] Ambrosio, De Spiritu Sancto, III, 112.
[10] Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II,10,1.
[11] Dei Verbum, n. 21.
[12] Gregorio Magno, Moralia, I, 2, 1 (PL 75, 553D).
[13] Ib. I, 10,31.
[14] Cf Origene, In Mt Ser., 38 (GCS, 1933, p. 7); In Cant.,3 (GCS, 1925, p. 202).

segunda-feira, 7 de abril de 2014

SÃO LEÃO MAGNO E A FÉ EM JESUS CRISTO VERDADEIRO DEUS E VERDADEIRO HOMEM - 4ª Pregação da Quaresma 2014

SÃO LEÃO MAGNO E A FÉ EM JESUS CRISTO VERDADEIRO DEUS E VERDADEIRO HOMEM

Fonte: http://www.cantalamessa.org/?p=2328&lang=pt

04 de abril de 2014
Quarta pregação da Quaresma
1. Oriente e ocidente unânimes sobre Cristo
Existem vários caminhos, ou métodos, para aproximar-se à pessoa de Jesus. Pode-se, por exemplo, partir diretamente da Bíblia e, também neste caso, é possível seguir várias vias: a via tipológica, seguida na mais antiga catequese da Igreja, que explica Jesus à luz das profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via histórica, que reconstrói o desenvolvimento da fé em Cristo a partir das várias tradições, autores e títulos cristológicos, ou dos diversos ambientes culturais do Novo Testamento. Pode-se, pelo contrário, partir das perguntas e dos problemas do homem de hoje, ou até mesmo da própria experiência de Cristo, e, de tudo isso, chegar à Bíblia. Todos esses são caminhos amplamente explorados.
A Tradição da Igreja elaborou, bem rápido, uma via de acesso ao mistério de Cristo, um modo seu de recolher e organizar os dados bíblicos relativos a ele, e esta via se chama o dogma cristológico, a via dogmática. Por dogma cristológico compreendo as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente o de Calcedônia, que, em substância, se resumem nesses três pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa.
São Leão Magno é o Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades deste mistério. Por um motivo bem específico. Na teologia latina estava pronta por dois séculos e meio a fórmula da fé em Cristo que se tornara o dogma de Calcedônia. Tertuliano tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem[1]”. Depois de muita pesquisa, os autores gregos chegam, por conta própria, a uma formulação idêntica em substância; mas não porque eles tenham se atrasado ou perdido tempo, e sim porque só agora era possível dar àquela fórmula o seu verdadeiro significado, tendo eles evidenciado, enquanto isso, todas as implicações e resolvido as dificuldades.
O Papa São Leão Magno é aquele que gerenciou o momento em que as duas correntes do rio – aquela latina e aquela grega – se uniram e com a sua autoridade de bispo de Roma favoreceu o acolhimento universal. Ele não se contenta em simplesmente transmitir a fórmula herdada por Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a adapta aos problemas que apareceram nesse ínterim, entre o concílio de Éfeso do 431 e aquele de Calcedônia do 451. Eis, em grandes linhas, o seu pensamento cristológico, como foi exposto no famoso Tomus ad Flavianum[2].
Primeiro ponto: a pessoa do Deus-homem é idêntica à do Verbo eterno: “Aquele que se fez homem, sob a forma de servo, é o mesmo que na forma de Deus criou o homem”. Segundo ponto: a natureza divina e a humana coexistem nesta única pessoa que é Cristo, sem mistura ou confusão, mas cada uma mantendo suas propriedades naturais (salva proprietate utriusque naturae). Ele começa a ser o que não era, sem cessar de ser o que era[3]. A obra da redenção exigia que “o único e mesmo mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relação à natureza humana e não morrer com respeito à natureza divina”. Terceiro ponto: A unidade da pessoa justifica o uso da comunicação dos idiomas, pela qual podemos afirmar que o Filho de Deus foi crucificado e enterrado, e também que o Filho do homem veio do céu.
Foi uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um acordo entre as duas grandes “escolas” de teologia grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros que eram o monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos tinham o reconhecimento, para eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e portanto, da plena humanidade de Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e resistências, podiam encontrar na formulação de Leão o reconhecimento da identidade da pessoa do Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus corações por acima de tudo.
Basta recordar o cerne da definição de Calcedônia para dar-se conta do quanto esteja presente nela o pensamento do Papa Leão:
“Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase[4]“.
Poderia parecer uma fórmula tecnicamente perfeita, mas árida e abstrata, porém, nela se baseia toda a doutrina cristã da salvação. Só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele também é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal, a tal ponto que, como se canta no Adoro te devote, “uma única gota de sangue derramado salva o mundo todo do pecado” (“Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui ab omni scelere”)
Sobre este ponto, oriente e ocidente, são unânimes. Esta era a situação da humanidade antes de Cristo, escrevem, com poucas diferenças entre eles, santo Anselmo entre os latinos e o Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o homem que tinha contraído a dívida pecando e que tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia fazê-lo, sendo a dívida infinita e sendo ele escravo daquele que deveria ter vencido; por outro lado está Deus que podia expiar o pecado e vencer o demônio, mas não deveria fazê-lo, não sendo ele o devedor. Era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele que podia vencer, e é aquilo que aconteceu com Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa[5]”.
2. Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas tranquilas certezas sobre Cristo, nos últimos dois séculos, foram atingidas por um ciclone crítico que tendia a tirar-lhes toda a consistência e a qualificá-las como puras invenções dos teólogos. A partir de Strauss, tornou-se uma espécie de grito de guerra entre os estudiosos do Novo Testamento: libertar a figura de Cristo dos grilhões do dogma, para reencontrar o Jesus histórico, o único real. “A ilusão de que Jesus possa ter sido homem no sentido pleno e que como única pessoa seja superior à toda a humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da teologia cristã ao mar aberto da ciência racional[6]”. E eis a conclusão à qual o estudioso chega: “A ideia do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de Nazaré da história por outro estão separados para sempre”.
Declara-se sem hesitação o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do dogma não satisfaz as exigências da ciência racional. O ataque continuou, com soluções alternativas, quase até os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um dogma: para conhecer o verdadeiro Jesus da história é preciso prescindir da fé nele posterior à Páscoa. Neste clima proliferaram reconstruções fantasiosas da figura de Jesus a benefício do espetáculo, algumas com pretensões de historicidade, mas que na verdade se baseavam em hipóteses de hipóteses, todas respondendo a gostos ou reivindicações do momento.
Mas agora, eu acho, chegamos ao fim da parábola. É hora de tomar nota da mudança que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma certa atitude defensiva e de vergonha que tem caracterizado os estudiosos crentes nos últimos anos, e ainda mais para fazer chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos divulgaram profusamente imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a mensagem é que não é possível mais escrever na boa-fé “Investigações sobre Jesus” que fingem ser “históricas”, mas prescindem, ou melhor, excluem desde o início, a fé nele.
Quem personaliza de modo mais claro a mudança em ato é um dos maiores estudiosos vivos do NT, o inglês James D.G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno livro, intitulado “Mudar perspectivas sobre Jesus”, os resultados da sua monumental pesquisa sobre as origens do cristianismo[7]. O autor pôs a descoberto as raízes dos dois pressupostos em que se baseiam a contraposição entre Jesus histórico e o Cristo da fé: primeiro, que para conhecer o Jesus da história é necessário prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o que realmente disse e fez o Jesus histórico, é preciso libertar a tradição das camadas e das adições posteriores e voltar para a camada original, ou à primeira “redação”, de uma determinada perícope evangélica.
Contra o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a fé começou antes da Páscoa; se alguns o seguiram e se tornaram seus discípulos é porque tinham acreditado nele. Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de fé. Nesta fé, o evento pascal marcará certamente um salto de qualidade, mas saltos de qualidade, embora menos importantes, já tinham acontecido antes da Páscoa, em momentos particulares, como a transfiguração, certos milagres sensacionais, o diálogo de Cesaréia de Filipe. A Páscoa não é um início absoluto.
Contra o outro assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as tradições evangélicas circularam por um certo tempo de forma oral, os estudiosos aplicavam sempre a tal tradição o modelo literário, como se faz hoje quando se quer voltar, de edição em edição, ao texto original de uma obra. Se levarmos em conta as leis que regularizam – até no presente, em certas culturas -, a transmissão oral das tradições de uma comunidade, veremos que não há necessidade de enxugar um dito evangélico, em busca de um hipotético núcleo originário, uma operação que abriu as portas a todo tipo de manipulação dos textos evangélicos, acabando por repetir aquilo que acontece quando se descasca uma cebola em busca do seu núcleo sólido que não existe. Algumas destas conclusões são aquelas que os estudiosos católicos desde sempre sustentaram[8], mas Dunn tem o mérito de tê-las defendido com argumentos dificilmente refutáveis a partir da mesma pesquisa histórico-crítica e com as suas próprias armas.
O rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um diálogo em seu primeiro livro sobre Jesus de Nazaré, dá por suposto este resultado. Partindo de um ponto de vista autônomo e por assim dizer neutro, ele faz notar como é vã a tentativa de separar o Jesus histórico do Cristo da fé pós-pascal. O Jesus histórico, o dos Evangelhos, por exemplo do discurso da montanha, é já um Jesus que exige a fé na sua pessoa como alguém que pode corrigir Moisés, que é senhor do sábado, pelo qual também pode-se fazer uma exceção ao quarto mandamento; em suma como alguém que se coloca em pé de igualdade com Deus. É próprio por isso, diz o rabino, que embora fascinado pela figura de Jesus, ele não poderá mais ser um dos seus discípulos.
O estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a continuidade entre o Jesus da história e o Cristo do querigma, não vai mais longe. Resta provar a continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A fórmula de Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento coerente da fé do Novo Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura com relação a ela? Este foi o meu principal interesse nos anos em que eu me ocupava de História das origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não difere daquela do Cardeal Newman, em seu famoso ensaio “Sobre o desenvolvimento da doutrina cristã[9]“. Houve certamente a mudança de uma cristologia funcional (o que Cristo “faz”) a uma cristologia ontológica (o que Cristo “é”), mas não se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se dá já no interior do querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo àquela de João, e em Paulo mesmo, na passagem das suas primeiras cartas àquelas da prisão, Filipenses e Colossenses.
3. Além da fórmula
Desta vez o próprio argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte doutrinal do tema. A pessoa de Cristo é o fundamento de todo o cristianismo. “Se a trombeta emite um som incerto, quem se preparará para a batalha?”, dizia São Paulo (1 Cor 14, 8): se não tem ideia clara sobre quem é Jesus Cristo, que força terá a nossa evangelização? Nos resta, no entanto, fazer agora uma aplicação prática para a vida pessoal e a fé atual da Igreja, que é o objetivo constante da nossa revisão dos Padres.
Quatro séculos e meio de formidável trabalho teológico deram à Igreja a fórmula: “Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Jesus Cristo é uma só pessoa”. Mais sinteticamente ainda: ele é “uma pessoa em duas naturezas”. A esta fórmula se aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard: “A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo encantado, onde descansam em um sono profundo os mais graciosos príncipes e princesas. Basta somente acordá-los, para que se coloquem de pé em toda a sua glória[10]”. A nossa tarefa é, portanto, a de despertar e de dar sempre nova vida aos dogmas.
A investigação sobre os Evangelhos – mesmo aquela que lembramos agora de Dunn – nos mostra que a história não nos pode levar ao “Jesus em si”, ao Cristo como é na realidade. O que alcançamos nos evangelhos é sempre, em todas as fases, um Jesus “lembrado”, mediado pela memória que dele conservaram os discípulos, embora se uma memória crente. É como a ressurreição. “Alguns dos nossos – dizem os dois discípulos de Emaús – foram ao túmulo e encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram” (Lc 24, 24). A história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de Nazaré, estão como disseram os discípulos nos evangelhos, mas ele não o vê.
O mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus “definitivo”, “formulado”, mas Tomás de Aquino nos ensina que “a fé não termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res). Entre a fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há entre a fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém pode dizer que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a realidade; somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus “real” que está além da história e por trás da definição?
E eis que nos deparamos com a grande notícia reconfortante. Existe a possibilidade de um conhecimento “imediato” de Cristo: é aquele que nos dá o Espírito Santo enviado por ele mesmo. Ele é a única “mediação não-mediata” entre nós e Jesus, no sentido que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que “o Espírito Santo é a nossa mesma comunhão com Cristo[11]”. E nisso, aquela do Espírito é diferente de qualquer outra mediação entre nós e o Ressuscitado, seja eclesial que sacramental.
Mas é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito do conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes se traduz em uma repentina iluminação de todo o trabalho e a pessoa de Cristo. Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie de definição “urbi et orbi” do senhorio de Cristo: “Saiba, portanto, com certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes” (At 2, 36).
São Paulo afirma que Jesus Cristo é revelado “Filho de Deus com poder pelo Espírito de santidade” (Rm 1, 4), isto é, por obra do Espírito Santo. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma iluminação interior do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O Apóstolo atribui ao Espírito Santo “a compreensão do mistério de Cristo”, que foi dada a ele, como a todos os santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5). Só se forem “fortalecidos pelo Espírito”, – continua o Apóstolo – os crentes poderão “compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento” (Ef 3, 16-19).
No Evangelho de João, o próprio Jesus anuncia esta obra do Paráclito com relação a ele. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos; recordar-lhes-á tudo o que ele disse; os conduzirá à toda verdade sobre a sua relação com o Pai; lhes dará testemunho. Exatamente isso será, de agora em diante, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e não de um outro espírito: se leva a reconhecer Jesus vindo na carne (cf. 1 Jo 4, 2-3).
4. Jesus de Nazaré, uma “pessoa”
Com a ajuda do Espírito Santo, façamos então uma pequena tentativa de “acordar” o dogma. Do triângulo dogmático de Leão Magno e de Calcedônia – “verdadeiro Deus”, “verdadeiro homem”, “uma pessoa” – nos limitamos a tomar em consideração somente o último elemento: Cristo “uma pessoa”. As definições dogmáticas são “estruturas abertas”, capazes de acomodar novos significados, o que é possível graças ao progresso do pensamento humano. Na sua etapa mais antiga, pessoa (do latim personare, ressoar) indicava a máscara que o ator precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso passou a indicar rosto, portanto, indivíduo, até chegar ao seu significado mais elevado de “ser individual de natureza racional” (Boécio).
No uso moderno, o conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e relacional, favorecido sem dúvida pelo uso trinitário de pessoa como “relação subsistente”. Indica, portanto, o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu. Nisso a fórmula latina “uma pessoa” revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva grega de “uma hispóstase”. Hipóstase se pode dizer de cada objeto particular existente; pessoa, somente do ser humano e, por analogia, do ser divino. Nós falamos hoje (e também os gregos falam) de “dignidade da pessoa”, não de dignidade da hipóstase.
Aplicamos tudo isso ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus é “uma pessoa” significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe por tu como ele me trata por tu. É necessário passar constantemente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não se pode falar. Jesus, infelizmente, para a maioria dos crentes é ainda um personagem, alguém de quem se discute, se escreve muito, uma memória do passado, um conjunto de doutrinas, de dogmas ou de heresias. É um ente, mais do que um existente.
O filósofo Sartre, em uma página famosa, descreveu a emoção metafísica que produz a súbita descoberta da existência das coisas e pelo menos nisto podemos dar-lhe crédito:
“Eu estava no Jardim Público. A raiz da castanheira entrava na terra, exatamente sob o meu banco. Eu não me lembrava que era uma raiz. As palavras se desvaneceram e, com elas, a significação das coisas, a maneira de empregá-las, as frágeis referências que os homens tinham traçado na sua superfície. [ ...] E depois tive aquela iluminação. Fiquei sem respiração. [...] geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos [...] E depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava, ali estava, era claro como a água: a existência dera-se subitamente a conhecer[12]”.
Para ir além das ideias e palavras de Jesus e entrar em contato com ele, pessoa que vive, é necessário passar por uma experiência desse tipo. Alguns exegetas interpretam o nome divino “Aquele que é”, no sentido de “aquele que está”, que é presente, disponível, agora, aqui[13]. Esta definição aplica-se perfeitamente também ao Jesus ressuscitado.
É possível ter Jesus como amigo, porque, depois de ter ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado, posso tratá-lo como um ser vivo a um ser vivo, um presente a um presente. Não com o corpo e nem sequer somente com a fantasia, mas “no Espírito” que é infinitamente mais íntimo e real de ambos. São Paulo nos assegura que é possível fazer tudo “com Jesus”: quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer outra coisa (cf. 1 Cor 10, 31; Col 3,17).
Infelizmente, raramente pensamos em Jesus como um amigo e um confidente. No subconsciente domina a imagem dele ressuscitado, ascendido ao céu, distante em sua transcendência divina, que retornará um dia, no fim dos tempos. Esquecemos que sendo, como diz o dogma, “verdadeiro homem”, melhor, a mesma perfeição humana, ele possui no mais alto grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento conosco. No seu discurso de despedida, dando plena vazão a seus sentimentos , ele diz: ” Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer todas as coisas que ouvi do meu Pai” (Jo 15 ,15).
Já vi esse tipo de relacionamento com Jesus, não tanto nos santos, onde prevalece o relacionamento com o Mestre, com o Pastor, com o Salvador, o Esposo…, mas com os hebreus que, de modo semelhante a Saulo, chegam hoje a aceitar o Messias. O nome de Jesus, de repente, muda de uma obscura ameaça, ao mais doce e amado dos nomes. Um amigo. É como se a ausência de dois mil anos de discussões sobre Cristo jogasse a favor deles. O deles não é nunca um Jesus “ideológico”, mas uma pessoa de carne e sangue. Do sangue deles! Emociona ler os testemunhos de alguns deles. Todas as contradições se resolvem em um instante, todas as escuridões se iluminam. É como ver a leitura espiritual do Antigo Testamento se realizar totalmente e rapidamente sob os próprios olhos. São Paulo o compara à queda de um véu dos olhos (cf. 2 Cor 3,16).
Durante sua vida terrena, embora amando a todos sem distinção, somente com alguns – com Lázaro e as irmãs e mais ainda com João, o “discípulo que ele amava” – Jesus tem um relacionamento de verdadeira amizade. Agora, porém, que ressuscitou e não está mais sujeito aos limites da carne, ele oferece a todo homem e a toda mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra. Que o Espírito Santo, o amigo do esposo, nos ajude a aceitar com alegria e maravilha esta possibilidade que preenche a vida.

FONTE: http://www.cantalamessa.org/?p=2328&lang=pt

[Tradução Thácio Siqueira/ ZENIT]
[1] Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2, p.1199)
[2] Leão Magno, Carta 28 (PL 54, 755 s.).
[3] Leão Magno, Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).
[4] Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 301-302.
[5] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20; Tomas de Aquino, Summa theologiae, III, q. 46, art. 1, ad 3.
[6] D.F. Strauss, Der Christus des Glaubens und der Jesus der Geschichte, 1865.
[7] J.D.G. Dunn, A New Perspective on Jesus. What the Quest for the Historical Jesus Missed, Grands Rapids, Michigan 2005 (Trad. ital. Cambiare prospettiva su Gesù, Paideia, Brescia 2011).
[8] Dunn considera muito o estudo do exegeta católico alemão H. Schürmann sobre a origem pré-pascal de certos ditos de Jesus. ob.cit. p.28
[9] Cf. o meu estudo, Dal kerygma al dogma. Studi sulla cristologia dei Padri, Vita e Pensiero, Milano 2006, pp. 11-51.
[10] S. Kierkegaard, Diario, II,A 110 (ed. a cura di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196).
[11] S. Ireneo, Contra as heresias, III, 24, 1
[12] J.-P. Sartre, La Nausea, Milano 1984, p. 193 s.

[13] Cf. G. Von Rad, Teologia dell’Antico Testamento, I, Paideia, Brescia 1972, p. 212

DESAFIOS PARA NOVA EVANGELIZAÇÃO NAS PEQUENAS COMUNIDADES

SAV - SERVIÇO DE ANIMAÇÃO VOCACIONAL


É sempre um desafio ir visitar as Comunidades e falar sobre VOCAÇÃO. Porém, o maior desafio é escutar os fiéis e não poder dar respostas às suas angústia. 



Após falar sobre VOCAÇÃO, é deixado um espaço para a comunidade tirar suas dúvidas. As dúvidas sempre mais em outro âmbito da vida da comunidade do que sobre VOCAÇÃO. Questões sobre amigamento, sobre a ação pastoral, sobre a evasão de católicos para seitas protestantes, etc.

A Comunidade de fé, deve viver do Evangelho. E para isso, se faz necessário ter pessoas capacitadas para anunciar e dinamizar a vida da Comunidade. O problema é que numa comunidade, como esta da imagem, cresce o número de pessoas amigadas, lideres que não podem celebrar o Culto, por exemplo, porque não têm o Sacramento do Matrimônio. Daí que o anúncio do Evangelho para na burocracia da própria Lei Eclesiástica.  


quarta-feira, 2 de abril de 2014

SANTO AMBRÓSIO E A FÉ NA EUCARISTIA - 3ª Pregação da Quaresma 2014

SANTO AMBRÓSIO E A FÉ NA EUCARISTIA



Terceira pregação da Quaresma
1. A reflexão sobre os sacramentos
Junto do tema da Igreja, outro tema sobre o qual se nota um progresso na passagem dos Padres gregos aos latinos é aquele dos sacramentos. Nos primeiros tinha faltado uma reflexão sobre os sacramentos em si, ou seja, sobre a ideia de sacramento, embora tendo tratado de forma excelente de cada mistério: batismo, unção, eucaristia[1].
O iniciador da teologia sacramental – daquilo que, a partir do século XII, será o De sacramentis” – é ainda mais uma vez Agostinho. Santo Ambrósio com as suas duas séries de discursos Sobre os sacramentos” e “Sobre os mistérios”, antecipa o nome do tratado, mas não o seu conteúdo. Também ele, de fato, se ocupa de cada sacramento e não ainda dos princípios comuns a todos os sacramentos: ministro, matéria, forma, modo de produzir a graça…
Então, por que escolher Ambrósio como mestre de fé de um tema sacramental como é aquele da Eucaristia sobre o qual queremos hoje meditar? A razão é que Ambrósio é aquele que mais do que qualquer outro tem contribuído para o fortalecimento da fé na presença real de Cristo na Eucaristia e lançou as bases para a futura doutrina da transubstanciação. No De sacramentis escreve:
“Este pão é pão antes das palavras sacramentais; quando acontece a consagração, de pão torna-se carne de Cristo [...] Com quais palavras se realiza a consagração e de quem são essas palavras? [...] Quando se realiza o venerável sacramento, já não é mais o sacerdote que usa as suas palavras, mas usa as palavras de Cristo. É, portanto, a palavra de Cristo que realiza este sacramento”[2].
No outro escrito, Sobre os mistérios, o realismo eucarístico é ainda mais explícito. Diz:
“A palavra de Cristo que pôde criar do nada o que não existia, não pode transformar em algo diferente aquilo que existe? De fato, não é algo menor dar às coisas uma natureza totalmente nova do que mudar aquela que já tem [...]. Este corpo que produzimos (conficimus) sobre o altar é o corpo nascido da Virgem. [...] Com certeza é a verdadeira carne de Cristo que foi crucificada, que foi sepultada; é, portanto, realmente o sacramento da sua carne [...]. O próprio Senhor Jesus proclama: ‘Este é o meu corpo’. Antes da bênção das palavras celestes usa-se o nome de outro objeto, depois da consagração significa corpo”[3].
Sobre este ponto a autoridade de Ambrósio, no desenvolvimento posterior da doutrina eucarística, prevaleceu sobre aquela de Agostinho. Este certamente acredita na realidade da presença de Cristo na Eucaristia, mas, como vimos na meditação passada, acentua ainda mais fortemente o seu significado simbólico e eclesial. Alguns dos seus discípulos chegarão a afirmar não só que a Eucaristia faz a Igreja, mas que a Eucaristia é a Igreja: “Comer o corpo de Cristo, não é nada mais do que tornar-se o corpo de Cristo”[4]. A reação à heresia de Berengário de Tours que reduzia a presença de Jesus na Eucaristia a uma presença só dinâmica e simbólica, provocou uma reação unânime na qual as palavras de Ambrósio tiveram um papel importante. Ele é a primeira autoridade que Santo Tomás de Aquino cita na sua Somma em favor da tese da presença real[5].
A expressão “corpo místico” de Cristo, que até agora tinha servido para designar a Eucaristia, passou aos poucos a indicar a Igreja, enquanto que a expressão “verdadeiro corpo” normalmente foi reservada somente à Eucaristia[6]”. Esta particular inversão marca, de certa forma, o triunfo da herança de Ambrósio sobre aquela de Agostinho. Expressões como aquelas do hino Ave verum, onde o corpo eucarístico de Cristo é saudado como “o verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria, que foi imolado na cruz e de cujo lado jorraram água e sangue”, parecem tiradas quase totalmente das palavras mencionadas acima por Ambrósio.
Podemos resumir dessa forma a diferença entre as duas perspectivas. Dos três corpos de Cristo – o corpo verdadeiro ou histórico de Jesus nascido de Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial – Agostinho une estreitamente o segundo e o terceiro, o corpo eucarístico e aquele da Igreja, diferenciando-os do corpo real e histórico de Jesus; Ambrósio une, de fato identifica , o primeiro com o segundo, ou seja, o corpo histórico de Cristo e aquele eucarístico, distinguindo-os do terceiro, ou seja, do corpo eclesial.
Neste sentido, se poderia ir muito além, caindo em um realismo exagerado, quase que – como dizia uma fórmula contrária à heresia de Berengário – o corpo e o sangue de Cristo estivessem presentes no altar “sensivelmente e fossem, na verdade, tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fieis[7]”. Mas o remédio de tal perigo estava na mesma noção de sacramento já claro na teologia. Que a Eucaristia não é uma presença física, mas sacramental, mediada por sinais que são, de fato, o pão e o vinho.
2. A Eucaristia e a Beraka judaica
Se existe um limite na visão de Ambrósio, esse é a ausência de qualquer referência à ação do Espírito Santo na produção do corpo de Cristo sobre o altar. Toda a eficácia reside nas palavras da consagração. Elas são para ele palavras criativas, ou seja, palavras que não se limitam a afirmar uma realidade existente, mas produzem a realidade que significam, como a frase “fiat lux” da criação. Isso influenciou na pouca importância que teve na liturgia latina a epiclese do Espírito Santo, que desempenha, pelo contrário, nas liturgias orientais um papel essencial como aquele das palavras da consagração.
As novas Orações Eucarísticas fizeram explícito, sobre esse ponto, o que no Cânone romano somente era mencionado implicitamente. A frase: “Santifica, oh Deus, esta oferta com a potência da tua benção”, equivale na verdade a dizer: “Santifica, Oh Deus, esta oferta com a potência do teu Santo Espírito”, e talvez teria sido melhor, no momento de traduzir o Cânone romano nas línguas modernas, explicitar neste sentido o significado da frase, de modo que nem sequer esta venerável oração eucarística ficasse sem uma verdadeira epiclese ao Espírito Santo.
Mas há uma lacuna maior, da qual se começa a dar-se conta, e que não diz respeito só a Ambrósio e nem sequer somente aos Padres latinos, mas à explicação do mistério eucarístico no seu todo. Mais do que nunca, vemos aqui como o estudo dos Padres não só nos ajuda a recuperar tesouros antigos, mas também a abrir-nos ao novo que emerge na história; a imitá-los não só no conteúdo, mas também no método que era o de colocar a serviço da palavra de Deus todos os recursos e os conhecimentos disponíveis no seu contexto cultural.
O novo recurso que temos hoje para compreender a Eucaristia é a aproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiros dias da Igreja, vários fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre o cristianismo e o judaísmo, até contrapô-los entre si, como faz já Ignácio de Antioquia[8]. Destacar-se dos hebreus – na data da Páscoa, nos dias de jejum, e em tantas outras coisas – se torna uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente direcionada aos próprios adversários e aos hereges é aquela de “judaizar”.
A respeito da Eucaristia, o novo clima de diálogo com o judaísmo tornou possível uma melhor compreensão da sua matriz hebraica. Como não é possível entender a Páscoa cristã, a menos que seja considerada como o cumprimento do que a Páscoa hebraica prenunciava, assim não é possível compreender completamente a Eucaristia se ela não é vista como o cumprimento do que os hebreus faziam e diziam ao longo da sua refeição ritual. O próprio nome Eucaristia não é nada mais do que a tradução de Beraka, a oração de bênção e agradecimento feita durante esta refeição. Um primeiro resultado importante dessa mudança foi que hoje nenhum estudioso sério avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tem tentado fazer por mais de um século.
Os Padres da Igreja conservam as Escrituras do povo hebraico, mas não a sua liturgia, à qual não podiam mais participar, depois da separação da Igreja da Sinagoga. Assim, para a Eucaristia utilizaram as figuras contidas nas Escrituras – o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná -, mas não o concreto contexto litúrgico no qual o povo hebraico celebrava todas estas memórias que era a refeição espiritual celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e semanalmente no culto da sinagoga. O primeiro nome pelo qual a Eucaristia foi designada por Paulo no Novo Testamento é o de “refeição do Senhor” (kuriakon deipnon) (1 Cor 11, 20), com evidente referência à refeição hebraica pela qual se diferencia já pela fé em Jesus.
É a perspectiva em que se coloca também Bento XVI no capítulo dedicado à Instituição da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião agora predominante dos estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de adeus; com Lous Bouyer, também Bento XVI acredita que seja possível “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânone, da beraka hebraica[9]”.
Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica, tentou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, especialmente das noções aristotélicas de substância e acidente. Também isso era um colocar a serviço da fé os conhecimentos novos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Nos nossos dias, temos que fazer o mesmo com os novos conhecimentos de ordem, desta vez, históricas e litúrgicas mais do que filosóficas.
Com base nos estudos já realizados nessa direção, especialmente o de L. Bouyer[10], gostaria de mostrar a luz intensa que recai sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrações evangélicas da instituição sobre o fundo do que sabemos da refeição espiritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não será diminuída, mas exaltada ao máximo.
3. O que aconteceu naquela noite
Um texto que mostra os laços estreitos entre a liturgia judaica e a ceia cristã é a Didaqué. Este texto não é nada mais do que uma coleção de orações da sinagoga, com o acréscimo, aqui e ali, das palavras “pelo teu servo Jesus Cristo”; o resto é idêntico à liturgia da sinagoga. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas “berakah” que em grego é traduzido por “Eucaristia”. A beraka resume a espiritualidade da antiga Aliança e é a resposta de benção e de ação de graças que Israel dá à palavra de amor dirigida-lhe pelo seu Deus.
O rito seguido por Jesus ao instituir a Eucaristia acompanhava todas as refeições dos Hebreus, mas assumia uma particular importância nas refeições em família ou em comunidade no sábado e nos dias festivos. No início da refeição, cada um por sua vez tomava pela mão uma taça de vinho e, antes de leva-la aos lábios, repetia uma benção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório: “Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei dos séculos, que nos destes este fruto da videira”. É o primeiro cálice de vinho.
Mas a refeição começava oficialmente só quando o pai de família ou o chefe da comunidade tinha partido o pão que tinha que ser distribuído entre os convidados. E, de fato, Jesus, logo após a frase, toma o pão, recita a benção, parte-o e o distribui dizendo: “Este é o meu corpo…” E aqui o rito, que era somente uma preparação, se torna realidade. Depois da benção do pão, que era considerada como uma benção geral por todo o alimento, serviam-se os pratos de costume.
Se os precedentes da Eucaristia se encontram na refeição ritual dos Judeus, então não tem mais significado especial saber se a festa da Páscoa coincidia com a Quinta-feira Santa ou com a Sexta-feira Santa. Jesus não associou a Eucaristia com nada particular próprio do alimento da Páscoa (deixando de lado a incompatibilidade da data, não há qualquer referência ao consumo do cordeiro e das ervas amargas), mas apenas com aqueles elementos que fazem parte do rito de cada dia: ou seja, a fração do pão no começo e com a grande oração de ação de graças no final. O caráter pascal da última ceia é inegável, mas é independente destas discussões e se explica com o nexo que Jesus coloca entre a Eucaristia (“o meu sangue derramado por vós”) e a sua morte de cruz. É ali que se realiza, de acordo com João, a figura do cordeiro pascal ao qual “não se quebra nenhum osso” (Jo 19,36).
Mas voltando ao ritual hebraico. Quando o jantar está acabando e as iguarias foram consumidas, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no começo. Estava prescrito que o presidente recebesse a água do mais jovem dos presentes e talvez João a tenha dado a Jesus. Mas, o Mestre, em vez de deixar-se servir, dá uma lição de humildade, lavando os seus pés. Terminado isso, tendo diante de si uma taça convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira por Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira para que continue no presente a sua obra. Concluída a oração, a taça passava de mão em mão e cada um bebia. Eis o rito antigo, realizado tantas vezes por Jesus em vida.
Lucas diz que depois de ter ceado Jesus tomou o cálice dizendo: “Este cálice é a nova aliança no meu Sangue que é derramado por vós”. Algo decisivo acontece quando Jesus acrescenta a estas palavras a fórmula das orações de agradecimento, ou seja, a beraka hebraica. Aquele rito era um banquete sacro no qual se celebrava e se agradecia um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. O alimento cotidiano abençoava a Deus por aquela Aliança, mas agora, do momento em que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela antiga Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.
Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele abre, oferece e estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Quando Jesus passa aquele cálice é como se dissesse: “Até agora, todas as vezes que tivestes celebrado esta refeição ritual tivestes comemorado o amor de Deus Salvador que vos redimiu do Egito. A partir de agora, toda vez que repetirdes o que fizemos hoje, o fareis não mais em comemoração de uma salvação da escravidão material no sangue de um animal; o fareis em memória de mim, filho de Deus que dá o seu Sangue para redimir-vos dos vossos pecados. Até aqui tivestes comido alimento normal para celebrar uma libertação material; agora comereis a mim, alimento divino sacrificado por vós, para fazer-vos uma só coisa comigo. E me comereis e bebereis o meu Sangue, no mesmo ato em que eu me sacrifico por vós. Esta é a nova e eterna Aliança no meu amor”.
Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus dá um alcance ilimitado ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo o que ele fez até agora na ceia é colocado nas nossas mãos. Repetindo o que ele fez, se renova aquele ato central da história humana que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que sobre a cruz se torna evento, na ceia nos é dado como sacramento, ou seja, como memorial perene do evento. O evento acontece apenas uma vez (semel). (Hb 10,12), o sacramento, sempre que o quisermos (quotiescumque) (1 Cor 11,26).
A idéia do “memorial” que Jesus retoma do ritual hebraico do sábado e dos dias festivos, referida em Êxodos 12, 14 contém a própria essência da Missa, a sua teologia, o seu significado íntimo para a salvação. O memorial bíblico é muito mais do que uma simples comemoração, do que uma simples lembrança subjetiva do passado. Graças a ele, intervém, fora da mente do orante, uma realidade que tem uma existência própria, que não pertence ao passado, mas existe e obra no presente e continuará a obrar no futuro. O memorial que até agora era o compromisso da fidelidade de Deus a Israel, agora é o corpo partido e o sangue derramado do Filho de Deus; é o sacrifício do Calvário “representado” (ou seja, tornado novamente presente) para sempre e para todos.
Aqui descobre-se o significado e a preciosidade da insistência de Ambrósio e, atrás dele, de forma mais evoluída, dos teólogos escolásticos e do concílio de Trento, sobre a presença “verdadeira, real e substancial de Cristo” na Eucaristia[11]. Só assim, de fato, é possível manter no “memorial” instituído por Jesus o seu caráter objetivo de dom absoluto, sem condições, independente de tudo, até mesmo da fé de quem o recebe.
4. A nossa assinatura no dom
Qual é o nosso lugar no drama humano-divino que temos lembrado? A nossa reflexão sobre a Eucaristia deve levar-nos a descobrir justamente isso. É para nós, de fato, para envolver-nos na sua ação, que Jesus fez do seu dom um “sacramento”.
Na Eucaristia acontecem dois milagres: um é aquele que faz do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo, o outro é aquele que faz de nós “um sacrifício vivo agradável a Deus”, que nos une ao sacrifício de Cristo, como autor, e não apenas como espectadores. No ofertório oferecemos o pão e o vinho que para Deus não tinham, é claro, nem valor nem significado por si mesmos. Agora, na consagração, é Cristo que coloca aquele valor que eu não posso colocar na minha oferta. Neste momento pão e vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo que se entrega à morte em um supremo ato de amor ao Pai.
Eis então o que aconteceu: o meu pobre dom privado de valor tornou-se o dom perfeito para o Pai. Jesus não dá somente a si mesmo no pão e no vinho, também nos pega e nos transforma (misticamente, não realmente) em si mesmo, também nos dá o valor que tem o seu dom de amor ao Pai. Naquele pão e naquele vinho estamos também nós; “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma”, escreve Agostinho[12].
Gostaria de resumir, com a ajuda de exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos em uma grande família em que há um filho, o primogênito, que admira e ama desmedidamente seu próprio pai. Para o seu aniversário deseja fazer-lhe um presente precioso. Antes, porém, de apresenta-lo pede, em segredo, a todos os seus irmãos e irmãs que coloquem a sua assinatura nesse dom. Este chega, portanto, nas mãos do pai como sinal do amor de todos os seus filhos, sem distinção, mesmo que, na verdade, só um pagou o preço dele.
É o que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama infinitamente o Pai Celestial. A ele quer fazer a cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso que se possa pensar, aquele da sua própria vida. Na Missa ele convida todos os seus “irmãos” a colocarem a sua assinatura no dom, de modo que ele chega a Deus Pai como o dom indistinto de todos os seus filhos, mesmo que só um tenha pagado o preço de tal dom. E que preço!
A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice; a nossa assinatura, explica Agostinho, é especialmente o amém que os fieis pronunciam no momento da comunhão: “Àquilo que sois respondeis: Amém e respondendo o assinais. Ouves, de fato: O corpo de Cristo, e respondes: Amém. Sejas membro do corpo de Cristo, para que seja verdadeiro o seu Amém… Sejais aquilo que vês e recebeis aquilo que sois[13]”. Toda a eclesiologia eucarística de Agostinho que lembramos semana passada encontra aqui o seu campo de aplicação. Se não é possível dizer que a Eucaristia é a igreja (como chegam a afirmar alguns dos seus discípulos), pode-se e deve-se dizer que a Eucaristia faz a Igreja.
Sabemos que quem assinou um compromisso tem o dever de honrar a própria firma. Isso significa que, saindo da Missa, temos que fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Temos que dizer também nós, mentalmente, aos irmãos: “Tomai, comei; este é o meu corpo”. Tomai o meu tempo, as minhas capacidades, a minha atenção. Tomai também o meu sangue, ou seja, os meus sofrimentos, tudo o que me humilha, me mortifica, limita as minhas forças, a minha mesma morte física. Quero que toda a minha vida seja, como aquela de Cristo, pão partido e vinho derramado pelos outros. Quero fazer de toda a minha vida uma eucaristia.
Recordei a Didaqué, como o texto que documenta a fase de transição da liturgia hebraica para aquela cristã. Terminamos com uma oração sua que inspirou tantas orações eucarísticas subsequentes:
“Como este pão partido estava
espalhado sobre as colinas e recolhido tornou-se
uma só coisa,
Assim a tua Igreja se recolha dos
confins da terra no teu reino
porque tua é a glória e a potência
por Jesus Cristo nos séculos”. Amem


FONTE: http://www.cantalamessa.org/?p=2320&lang=pt

[Tradução Thácio Siqueira / ZENIT]
[1] Cf. J. Kelly, Il pensiero cristiano delle origini, cit., pp. 415 ss.
[2] Ambrósio, De sacramentis, IV,14-16.
[3] Ambrósio, De mysteriis, 52-53.
[4] Guglielmo di Saint-Thierry, PL 184, 403.
[5] Cf. S. Th., III, q.LXXV. aa. 1 ss.
[6] É o processo reconstruído por H. de Lubac, in Corpus Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au Maoyen Age, Aubier, Paris 1949
[7] Denzinger-Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, nr. 690
[8] Ignacio de Antiquioa, Epístola aos Magnésios, 10,3.
[9] J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol .II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966
[10] Além do livro citado de L. Bouyer, cf. A. Baumstark, Liturgie comparée, Chevetogne 1953; L. Alonso Schoekel, Meditaciones biblicas sobre la Eucaristia, Sal Terrae, Santander 1986 ; Seung Ai Yang, “Les repas sacrés dans le Judaisme de l’époque hellénistique”, in Encyclopedie de l’Eucaristie, du Cerf, Paris 2000, pp. 55-59.
[11] Cf. Conc. Tridentino, Canon 1 de SS. Eucharistiae sacramento (DS, 1651).
[12] Agostinho, De civitate Dei, X, 6 (CCL 47, 279 (“ In ea re quam offert, ipsa offertur”).
[13] Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 s.)