SANTO AGOSTINHO: “CREIO NA IGREJA UNA
E SANTA”
Segunda pregação de Quaresma - 21 de março
de 2014
1. Do Oriente ao Ocidente
Na meditação introdutória, da semana
passada, refletimos sobre o significado da Quaresma como um tempo para irmos
com Jesus até o deserto, em jejum de alimentos, palavras e imagens, para
aprender a superar as tentações e, sobretudo, crescer na intimidade com Deus.
Nas quatro pregações que restam, dando
continuidade à reflexão iniciada na Quaresma de 2012 com os Padres gregos,
frequentaremos agora a escola dos quatro grandes doutores da Igreja latina:
Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno; para ver o que cada um nos
diz, hoje, sobre a verdade da fé que mais particularmente defendeu:
respectivamente, a natureza da Igreja, a presença real de Cristo na Eucaristia,
o dogma cristológico de Calcedônia e a inteligência espiritual das Escrituras.
O objetivo é redescobrir, por trás
desses grandes Padres, a riqueza, a beleza e a felicidade de crer; passar, como
diz São Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé acreditada para uma fé
vivida. Teremos, assim, um aumento do “volume” de fé dentro da Igreja para
constituir depois a força maior do seu anúncio ao mundo.
O título do ciclo vem de um pensamento
caro aos teólogos medievais: “Nós”, dizia Bernardo de Chartres, “somos como
anões sentados em ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe
do que eles, não pela agudeza do nosso olhar nem pela altura do nosso corpo,
mas porque somos carregados para o alto e elevados por eles a uma altura
gigantesca” (1). Este pensamento encontrou expressão artística em certas
estátuas e vitrais de catedrais góticas da Idade Média, em que são
representados personagens de estatura imponente, que carregam, sentados sobre
seus ombros, homens pequenos, quase anões. Os gigantes eram para eles, como são
para nós, os Padres da Igreja.
Depois das lições de Atanásio, Basílio
de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, respectivamente sobre a
divindade de Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a Trindade e sobre o conhecimento
de Deus, podia-se ter a impressão de que restasse muito pouco a ser feito pelos
Padres latinos na edificação do dogma cristão. Um olhar superficial para a
história da teologia nos convence imediatamente do contrário.
Motivados pela cultura a que pertenciam,
favorecidos pela sua forte têmpera especulativa e condicionados pelas heresias
que eram forçados a combater (arianismo, apolinarismo, nestorianismo,
monofisismo), os Padres gregos tinham se concentrado principalmente nos
aspectos ontológicos do dogma: a divindade de Cristo, as suas duas naturezas e
o modo da sua união, a unidade e a trindade de Deus. Os temas mais caros a
Paulo, a justificação, a relação entre lei e evangelho, a Igreja como corpo de
Cristo, foram deixados à margem da sua atenção ou tratados en passant. Aos seus
escopos respondia muito melhor João, com a sua ênfase na encarnação, do que
Paulo, que põe no centro de tudo o mistério pascal, isto é, o agir, mais do que
o ser de Cristo.
A índole dos latinos, mais inclinada,
excetuando-se Agostinho, a se ocupar de problemas específicos, jurídicos e
organizacionais, do que de questões especulativas, unida ao surgimento de novas
heresias, como o donatismo e o pelagianismo, estimulará uma reflexão nova e
original sobre os temas paulinos da graça, da Igreja, dos sacramentos e das
Escrituras. São os tempos sobre os quais queremos refletir nesta pregação
quaresmal.
2. O que é a Igreja?
Comecemos a nossa resenha pelo maior dos
padres latinos, Agostinho. O doutor de Hipona deixou a sua marca em quase todas
as áreas da teologia, mas especialmente em duas: a da graça e a da Igreja; a
primeira, fruto da sua luta contra o pelagianismo; a segunda, de sua luta
contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de Santo
Agostinho sobre a graça prevaleceu, do século XVI em diante, tanto no âmbito
protestante (ao qual estão ligados Lutero, com a doutrina da justificação, e
Calvino, com a da predestinação), quanto no campo católico, por causa das
controvérsias levantadas por Jansen e Baio (2). Já o interesse pelas suas
doutrinas eclesiais prevalece em nossos dias, porque o Concílio Vaticano II fez
da Igreja o seu tema central e porque o movimento ecumênico tem na ideia de
Igreja a questão crucial a ser resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos
Padres da Fé para o hoje da fé, vamos nos ocupar desta segunda área de
interesse de Santo Agostinho, que é a Igreja.
A Igreja não era um assunto desconhecido
para os Padres gregos nem para os escritores latinos anteriores a Agostinho
(Cipriano, Hilário, Ambrósio), mas as suas afirmações se limitavam
principalmente a repetir e comentar afirmações e imagens das Escrituras. A
Igreja é o novo povo de Deus; a ela é prometida a indefectibilidade; ela é “a
coluna e a base da verdade”; o Espírito Santo é o seu mestre supremo; a Igreja é
“católica” porque se estende a todos os povos, ensina todos os dogmas e possui
todos os carismas; na esteira de Paulo, fala-se da Igreja como do mistério da
nossa incorporação a Cristo por meio do batismo e do dom do Espírito Santo; ela
nasceu do lado aberto de Cristo na cruz, como Eva do lado de Adão adormecido
(3).
Tudo isso, porém, era dito
ocasionalmente; a Igreja ainda não tinha entrado em discussão. Quem será
forçado a tratar dela é justamente Agostinho, que, durante quase toda a vida,
teve de lutar contra o cisma dos donatistas. Talvez ninguém se lembrasse hoje
daquela seita norte-africana se ela não tivesse sido a ocasião de origem do que
hoje chamamos de eclesiologia, ou seja, um discurso refletido sobre o que é a
Igreja no desígnio de Deus, a sua natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, um certo Donato, bispo
da Numídia, se recusou a receber novamente na comunhão eclesial aqueles que
durante a perseguição de Diocleciano tinham entregado os livros sagrados às
autoridades estatais, renegando a fé para salvar a vida. Em 311, foi eleito
bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado, erradamente segundo os católicos,
de ter traído a fé durante a perseguição de Diocleciano. Opôs-se a esta
nomeação um grupo de setenta bispos do norte africano, liderados por Donato.
Eles depuseram Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado pelo papa
Milcíades em 313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma que criou no
norte da África uma Igreja paralela à católica, mantida até a invasão dos vândalos,
um século depois.
Durante a polêmica, eles tentaram
justificar a sua posição com argumentos teológicos. Foi para refutá-los que
Agostinho desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da Igreja. Isto aconteceu
em dois contextos diferentes: nas obras escritas diretamente contra os
donatistas e nos seus comentários à Escritura e discursos ao povo. É importante
distinguir entre esses dois contextos porque, conforme cada um, Agostinho
insistirá mais em alguns aspectos da Igreja do que em outros e só a partir do
conjunto é que pode ser entendida a sua doutrina completa. Vamos ver, portanto,
brevemente, quais são as conclusões a que o santo chega em cada um dos dois
contextos, a começar pelo diretamente antidonatista.
a. A Igreja, comunhão dos sacramentos e
sociedade dos santos. O cisma donatista partiu de uma convicção: não pode
transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos administrados
desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este argumento, que no
início foi aplicado à ordenação do bispo Ceciliano, acabou estendido
rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com isto, os
donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de rebatizar
quem vinha das suas fileiras.
Em resposta, Agostinho desenvolve um
princípio que se tornará uma conquista perene da teologia e que lança as bases
de um futuro tratado de sacramentis: a distinção entre potestas e ministerium,
ou seja, entre a causa da graça e o seu ministro. A graça conferida pelos
sacramentos é obra exclusiva de Deus e de Cristo; o ministro não passa de um
instrumento: “Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João batiza, é Cristo quem
batiza; Judas batiza, é Cristo quem batiza”. A validade e eficácia dos
sacramentos não é impedida pelo ministro indigno: uma verdade da qual, bem
sabemos, o povo cristão precisa se lembrar também hoje…
Neutralizada, assim, a principal arma do
adversário, Agostinho pode elaborar a sua grandiosa visão da Igreja mediante
algumas distinções fundamentais. A primeira é entre a Igreja presente ou
terrestre e a Igreja celestial ou futura. Só esta segunda será uma Igreja de
todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente será sempre o campo em
que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e peixes
ruins, ou seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estágio terreno,
Agostinho opera outra distinção: entre a comunhão dos sacramentos (communio
sacramentorum) e a sociedade dos santos (societas sanctorum). A primeira une
visivelmente entre si todos aqueles que participam dos mesmos sinais externos:
os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une entre si todos e
apenas aqueles que, além dos sinais, também têm em comum a realidade escondida
nos sinais (res sacramentorum), que é o Espírito Santo, a graça, a caridade.
Dado que na terra sempre será impossível
saber com certeza quem possui o Espírito Santo e a graça, e, mais ainda, se
eles perseverarão nesse estado até o fim, Agostinho acaba identificando a
verdadeira e definitiva comunidade dos santos com a Igreja celeste dos
predestinados. “Quantas ovelhas que hoje estão dentro estarão fora, e quantos
lobos que hoje estão fora estarão dentro!” (5).
A novidade, neste ponto, mesmo no
tocante a Cipriano, é que, enquanto este fazia consistir a unidade da Igreja em
algo externo e visível, na concórdia de todos os bispos entre si, Agostinho a
faz consistir em algo interno: o Espírito Santo. A unidade da Igreja é operada,
assim, pelo mesmo que opera a unidade na Trindade: “O Pai e o Filho quiseram
que estivéssemos unidos entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo que os
une, o amor, que é o Espírito Santo” (6). Ele executa na Igreja a mesma função
que exerce a alma em nosso corpo natural: ser o seu princípio vital e
unificador. “O que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o
Corpo de Cristo, que é a Igreja” (7).
A plena pertença à Igreja exige as duas
coisas juntas, a comunhão visível dos sinais sacramentais e a comunhão
invisível da graça. Esta, no entanto, admite graus, e por isso não quer dizer que
se deva estar necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte dentro e
em parte fora. Há uma pertença exterior, ou sinais sacramentais, em que se
situam os cismáticos donatistas e os próprios maus católicos, e uma comunhão
plena e total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graça
(sacramentum), sem receber, porém, a realidade interior produzida por eles (res
sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria condenação, não para a própria
salvação, como no caso do batismo administrado pelos cismáticos ou da
Eucaristia recebida indignamente pelos católicos.
b. A Igreja Corpo de Cristo animado pelo
Espírito Santo. Nos escritos exegéticos e nos discursos ao povo, encontramos
esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas menos pressionado pela
controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho pode insistir
mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a ele. Neles, a
Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos, como o corpo
de Cristo (ainda falta o adjetivo “místico”, que será adicionado mais tarde),
animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo eucarístico a ponto de, às
vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o que ouviram os seus fiéis,
numa festa de Pentecostes, sobre esta questão:
“Se queres entender o corpo de Cristo,
ouve o Apóstolo que diz aos fiéis: Vós sois o corpo de Cristo e os seus membros
(1 Co 12,27). Se vós sois o corpo e os membros de Cristo, na mesa do Senhor
está o vosso mistério: recebei o vosso mistério. Ao que sois, respondeis ‘amém’
e, ao respondê-lo, o confirmais. É dito a vós: ‘o corpo de Cristo’, e
respondeis: ‘amém’. Sê membro do corpo de Cristo, para o teu amém ser
verdadeiro… Sede o que vedes e recebei o que sois” (8).
O nexo entre os dois corpos de Cristo se
fundamenta, para Agostinho, na singular correspondência simbólica entre o devir
de um e o formar-se da outra. O pão da Eucaristia é obtido da massa de muitos
grãos de trigo e o vinho de uma multidão de bagos de uva: assim a Igreja é
formada por muitas pessoas, reunidas e amalgamadas pela caridade que é o
Espírito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro colhido,
depois moído, misturado com água e assado no forno, assim os fiéis esparsos
pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, moídos pelas penitências e
exorcismos que precedem o batismo, imersos na água do batismo e passados pelo
fogo do Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento
“significando causat”: significando a união de várias pessoas em uma, a
Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido, podemos dizer que “a Eucaristia
faz a Igreja”.
3. Atualidade da eclesiologia de
Agostinho
Vamos agora ver como as ideias de
Agostinho sobre a Igreja podem ajudar a iluminar os problemas que ela enfrenta
em nosso tempo. Quero me concentrar em especial na importância da eclesiologia
de Agostinho para o diálogo ecumênico. Uma circunstância torna esta escolha
particularmente oportuna. O mundo cristão se prepara para celebrar o quinto
centenário da Reforma Protestante. Já começaram a circular declarações e
documentos conjuntos em vista do evento (10). É vital, para toda a Igreja, não
estragarmos esta ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar,
talvez com maior objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um e de
outro, mas sim darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou
de um canal, que permite que os navios continuem a sua navegação num patamar
mais elevado.
A situação do mundo, da Igreja e da
teologia mudou desde aquela época. Trata-se de recomeçar a partir da pessoa de
Jesus, de ajudar humildemente os nossos contemporâneos a descobrir a pessoa de
Cristo. Devemos nos remeter ao tempo dos apóstolos. Eles tinham diante de si um
mundo pré-cristão; nós temos diante de nós um mundo em grande parte
pós-cristão. Quando Paulo quis resumir em uma frase a essência da mensagem
cristã, ele não disse “Anunciamos esta ou aquela doutrina”, mas “Nós
proclamamos Cristo, e Cristo crucificado” (1 Cor 1, 23). E ainda: “Nós
proclamamos Jesus Cristo, o Senhor” (2 Cor 4,5).
Isto não significa ignorar o grande enriquecimento
teológico e espiritual produzido pela Reforma, nem querer retornar ao ponto de
antes; significa, em vez disso, deixar que toda a cristandade se beneficie das
suas conquistas, uma vez libertadas de certas forçações devidas ao clima
polêmico do momento e às posteriores controvérsias. A justificação gratuita
pela fé, por exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com mais força do que
nunca, mas não em oposição às boas obras, o que é uma questão superada, e sim
em oposição à pretensão do homem moderno de se salvar sozinho, sem necessidade
nem de Deus nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que isto seria o
modo com o qual Lutero predicasse a justificação por fé.
Vamos ver como a teologia de Agostinho
pode nos ajudar neste esforço para superar as barreiras seculares. O caminho a
percorrer hoje, em certo sentido, segue na direção oposta à que foi tomada por
ele contra os donatistas. Na época, era preciso ir da comunhão dos sacramentos
à comunhão na graça do Espírito Santo e na caridade, mas hoje temos que ir da
comunhão espiritual da caridade à plena comunhão, inclusive nos sacramentos,
entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distinção entre os dois níveis de
realização da verdadeira Igreja, o externo, dos sinais, e o interno, da graça,
permite que Agostinho formule um princípio que seria impensável antes dele:
“Pode haver algo na Igreja católica que não seja católico, e fora da Igreja
católica algo católico” (11). Os dois aspectos da Igreja, o visível e
institucional e o invisível e espiritual, não podem ser separados. Isso é
verdade e foi reiterado por Pio XII na Mystici corporis e pelo Concílio
Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido às separações históricas e ao pecado
humano, até que se realize a sua correspondência plena, não podemos dar mais
importância à comunidade institucional do que à espiritual.
Para mim, isto levanta uma séria
indagação. Posso eu, como católico, me sentir mais em comunhão com a multidão
dos que, tendo sido batizados na minha própria Igreja, se desinteressam completamente
de Cristo e da Igreja, ou se interessam por ela apenas para falar mal, do que
me sinto em comunhão com as fileiras daqueles que, apesar de pertencer a outras
confissões cristãs, acreditam nas mesmas verdades fundamentais em que eu creio,
amam Jesus Cristo até dar a vida por ele, difundem o Evangelho, se esforçam
para aliviar a pobreza no mundo e possuem os mesmos dons do Espírito Santo que
nós? As perseguições, tão frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem
distinção: os perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas
são católicas ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos
“uma coisa só”!
Esta, obviamente, é uma pergunta que
deveria ser feita também pelos cristãos das outras igrejas a propósito dos
católicos, e, graças a Deus, é precisamente isto o que está acontecendo de uma
forma oculta, porém maior do que as notícias nos deixam vislumbrar. Um dia,
tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros ficarão, por não termos notado
antes o que o Espírito Santo estava realizando entre os cristãos do nosso
tempo, à margem da oficialidade. Fora da Igreja católica há muitíssimos
cristãos que olham para ela com olhos novos e começam a reconhecer nela as suas
próprias raízes.
A intuição mais nova e fecunda de Agostinho
sobre a Igreja, como vimos, foi a de identificar o princípio essencial da sua
unidade no Espírito, mais do que na comunhão horizontal dos bispos uns com os
outros e dos bispos com o papa de Roma. Como a unidade do corpo humano é dada
pela alma que vivifica e move todos os seus membros, assim é a unidade do corpo
de Cristo. Esta unidade é um fato místico, mais do que uma realidade que se
expressa social e visivelmente em perspectiva externa. É o reflexo da unidade
perfeita que existe entre o Pai e o Filho por obra do Espírito. Foi Jesus quem
fixou de uma vez para sempre este fundamento místico da unidade quando disse:
“Que todos sejam um, como nós somos um” (Jo 17, 22). A unidade essencial na
doutrina e na disciplina será o fruto desta unidade mística e espiritual, nunca
a sua causa.
Os passos mais concretos para a unidade
não são dados, portanto, em torno de uma mesa ou nas declarações conjuntas
(embora tudo isto seja importante); são dados quando os crentes de diferentes
confissões proclamam juntos, em acordo fraterno, o Senhor Jesus, compartilhando
cada um o próprio carisma e reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4. Membros do corpo de Cristo, movidos
pelo Espírito!
Em seus discursos ao povo, Agostinho
nunca expõe as suas ideias sobre a Igreja sem apresentar imediatamente as
consequências práticas para a vida cotidiana dos fiéis. E é isto o que nós
também queremos fazer antes de concluir a nossa meditação, como se nos
colocássemos entre as fileiras dos seus ouvintes de então.
A imagem da Igreja como Corpo de Cristo
não é uma novidade de Agostinho. O que é novo nele são as conclusões práticas
para a vida dos crentes. Uma delas é que não temos mais razão para nos olharmos
com inveja e com ciúme. O que eu não tenho, mas os outros têm, também é meu.
Ouvimos o apóstolo elencar todos aqueles maravilhosos carismas: apostolado,
profecia, curas… e talvez nos entristeçamos pensando que não temos nenhum
deles. Mas, cuidado, alerta Agostinho: “Se tu amas, o que tens não é pouco. Se
de fato amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído
por ti! Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu expulsar a inveja,
será meu o que tu possuis”.
Somente o olho, no corpo, tem a
capacidade de ver. Mas o olho, por acaso, enxerga apenas para si? Não é todo o
corpo que se beneficia da sua capacidade de ver? Só a mão age, mas ela age,
acaso, apenas para si mesma? Se uma pedra está prestes a atingir o olho, a mão
por acaso permanece imóvel, dizendo que o golpe, afinal, não é contra ela? O
mesmo acontece no corpo de Cristo: o que cada membro é e faz, Ele é e faz para
todos!
Eis por que a caridade é o “caminho mais
excelente” (1 Cor 12 , 31): ela me faz amar a igreja, ou a comunidade em que
vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas alguns, são meus. E há
mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu possuo é mais
teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar; eu posso me
comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno “um címbalo que retine” (1
Cor 13,01); o meu carisma “de nada me aproveita”, ao passo que o ouvinte não
deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica realmente
os dons; ela faz do carisma de um, o carisma de todos.
“Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a
unidade da Igreja?”, perguntava Agostinho aos seus fiéis. “Então, quando um
pagão te perguntar por que não falas todas as línguas, se está escrito que
aqueles que receberam o Espírito Santo falam todas as línguas, responde sem
hesitar: ‘É claro que falo todas as línguas! Eu pertenço ao corpo da Igreja,
que fala todas as línguas e em todas as línguas proclama as grandes obras de
Deus’” (13).
Quando formos capazes de aplicar esta
verdade não só às relações dentro da comunidade em que vivemos e à nossa
Igreja, mas também às relações entre uma Igreja cristã e a outra, naquele dia a
unidade dos cristãos será praticamente um fato consumado.
Acolhamos a exortação com que Agostinho
fecha muitos dos seus discursos sobre a Igreja: “Se quiserdes, pois,
experimentar o Espírito Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a
eternidade. Amém” (14).
[Tradução do original italiano por ZENIT
português]
(1) Bernardo de Chartres, coment. João
de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116).
(2) A este âmbito da influência de
Agostinho é dedicado o livro de H. de Lubac, Augustinisme et théologie moderne,
Paris, Aubier 1965.
(3) Cf.
J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, London 1968 chap. XV.
(4) Agostinho, Contra Epist. Parmeniani
II,15,34; cf. todo o Sermo 266.
(5) Agostinho, In Ioh. Evang. 45,12:
“Quam multae oves foris, quam multi lupi intus!”.
(6) Agostinho, Discursos, 71, 12, 18 (PL
38,454).
(7) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38,
1231).
(8) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 em
diante).
(9) Ibidem.
(10) Cf. documento conjunto
católico-luterano “Do conflito à comunhão”,
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html
(em italiano).
(11) Agostinho, De Baptismo, VII, 39,
77.
(12) Agostinho, Tratados sobre João,
32,8.
(13) Cf. Agostinho, Discursos, 269, 1.2
(PL 38, 1235 s.).
(14) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38,
1231)FONTE: http://www.cantalamessa.org/?lang=pt
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